Já por mais do que uma vez falei aqui em Jafar Panahi, cineasta iraniano preso por alegadas ilicitudes, argumento que apenas serve para disfarçar motivos políticos, em mais um atentado aos Direitos do Homem nos países islâmicos. Já depois de ter iniciado uma greve de fome, várias personalidades do mundo do cinema conseguiram a libertação do realizador, que ainda assim teve de pagar uma multa avultada.
É indiscutível a enorme influência socio-psicológica que o cinema tem e sempre teve na sociedade - é um veículo movimentador de massas. Porém, é com o alastrar da filosofia neo-realista que as luzes se começam a focar em problemas sociais, económicos e políticos de forma crua, realista, com um tom documentarista. A gritar "Intervenção!". É precisamente desta corrente que emerge Panahi, com uma filmografia dedicada à defesa dos Direitos Humanos, com particular intensidade no que toca aos direitos das mulheres, e é exactamente isso que deixa os dirigentes iranianos receosos.
The Circle, muito premiado em vários festivais de cinema (cinco prémios em Veneza), assim como muitas das outras obras do director, é o primeiro que aqui vos trago. Conta a estória de quatro mulheres e a forma como lhes são negadas certas liberdades e certos direitos que, por serem tão básicos e tão óbvios na sociedade ocidental, quase não merecem sequer lugar no nosso pensamento.
A cena inicial é curta mas esclarecedora. Solmaz (Solmaz Panahi) (nunca a chegamos a ver) é uma rapariga que acabou de dar à luz uma menina, quando o ultrassom havia revelado que seria um menino e quando toda a família do noivo exigia um menino. A consequência será o divórcio e o desrespeito.
Segue-se a jornada de Nargess (Nargess Mamizadeh) e Arezou (Maryiam Palvin Almani) que, acabadas de sair da prisão, tentam arranjar dinheiro para comprar um bilhete de autocarro para fugirem daquela cidade e voltarem às origens da segunda, o que seria o começo de uma nova vida. Esta é presa por tentar vender um colar, exactamente para arranjar dinheiro, mas Nargess, ainda que a muito custo (não tinha identificação para provar que era estudante, podendo assim viajar sozinha, nem ia acompanhada de um homem), compra um bilhete. Infelizmente, não chega a embarcar na viagem, com medo da polícia que revistava as bagagens (podia ter de voltar para a prisão).
Falhados os seus intentos, Nargess vai procurar Patri (Fereshte Sadre Orafaiy), também acabada de sair da prisão. Não chega a conseguir falar com a amiga, já que esta se vê forçada a fugir de casa quando os irmãos, dois "brutamontes", chegam para "falar" com ela. Patri vai ter com Ellah (Ellah Saboktakin), enfermeira e igualmente ex-condenada, implorando-lhe que o seu marido, médico, a ajude com um aborto que não pode fazer, por não ter a autorização de nenhum homem (pai ou marido). Sem sucesso, acaba a deambular pelas ruas, sem poder ir para um hotel por não ter identificação, deparando-se com uma mãe que abandona uma criança, esperando que alguém a adopte e lhe garanta uma vida melhor e uma prostituta que vê ser presa.
Pelo meio, assistimos a inacreditáveis obrigações das mulheres, como a de terem de se cobrir com um manto para entrar em certos sítios.
A cena final é de uma mestria incalculável. As várias mulheres que ficámos a conhecer estão na prisão e alguém telefona a perguntar por uma tal de Shomalz (da cena inicial). No final de contas, estamos presos num círculo vicioso de onde não parece haver maneira de sair - uma constante violação à dignidade humana das mulheres que parecem condenadas à opressão.
É um filme alarmante. Os diálogos são poucos, o que alio às expressões constantemente assustadas e tristes das mulheres (grandes interpretações) para concluir que há uma intenção nisso mesmo - o retrato da falta de liberdade de expressão. Todas as falas são particularmente incisivas, como se não devessem mesmo dizer mais do que o essencial. O argumento é bastante simples, no final de tudo, e julgo que consegue abranger uma série de pequenos aspectos que nos deixam com um nó na garganta que nos vai fazer reflectir. Notem que não se trata de tortura, de sangue, de violência - estamos a falar de pequenas coisas, como o direito de passear livremente, e é exactamente daqui que parte o problema. Além disso, a imagem está bastante realista, balançando entre a ficção e o documentário, pelo que cumpre na perfeição o seu objectivo de ser um retrato da crua realidade.
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