Tuesday, August 17, 2010

Almodóvar e o amor e a paixão na morte: Matador (1986), Carne Trémula (1997) e Volver (2006)

A morte não existe, por si própria. A morte não é, não o pode ser, por não passar de um nada que é a negação de um tudo. No máximo, a morte está. Não no corpo inerte que olhamos com pesar, mas sim nas memórias, nas acções e nas feições dos que vivem. É por isso mesmo que, quer queiramos, quer não, a morte é uma coisa da vida. Mais, a morte é uma coisa dos vivos. A morte está onde brota o amor, onde discorre a saudade, onde aflige a necessidade, onde refulge o ódio ou onde palpita a vingança.


É assim que, em Matador, Pedro Almodóvar nos conta uma estória incrivelmente familiar sobre fazer a morte, num retrato ritualístico. Uma familiaridade que não significa conhecimento, costume, que não significa que estejamos habituados à sua estória (algo impossível, nos complexos meandros dos argumentos do autor), mas que remete para uma caracterização quente, próxima e realista de várias personagens, das suas relações, vivências e locais, na Espanha dos anos 80. Na base de tudo isto, para além das magníficas e tão bem orquestradas cores e músicas, está uma câmara silenciosa e intimista, e o motivo mais cultural possível: a tourada. A emaranhada teia que vai ligar as personagens principais é feita por via das mais rotineiras emoções, como o orgulho, a admiração, a lealdade, a culpa ou a paixão, mas que se suplantam todas elas, como acabamos por perceber, em algo único: o desejo. Nesta película, o desejo é retratado de forma tão intensa como negra, não só fazendo referência à morte, como sendo parte da mesma, enquanto está na mente e no corpo do Homem. No final, o sexo, o incontrolável impulso da carne, consagram esse mesmo estado de vida: a morte (excelente fotografia da cena dos amantes ensanguentados, que merecerá análise na rubrica "A Análise da Cena").



Carne Trémula, até agora o único filme do realizador espanhol cujo argumento é uma adaptação, também se desvia, tal como Matador, do tom paródico e cáustico da maior parte da sua filmografia, mas não chega a ser tão soturno como a obra acima analisada. Num jeito próximo do thriller, é, no entanto, tão complexo como os restantes, sempre evidenciando o inafastável poder e influência de cada relação humana na vida de cada um (os primeiros minutos, com a estreia de Penélope com o director, são fenomenais, grande direcção e interpretação). São seis as personagens que se ligam entre si através da amizade, do amor, do ódio, da vingança ou, com mais força, do passado e da sorte, ou azar, dependendo do ponto de vista. Cada pequeno pormenor nos lembra que o homem é puro desejo, pura necessidade e por isso é-nos impossível definir posições quanto às personagens - queremos o bem e o mal a todos (o remorso e o ódio chegam a culminar numa ferverosa e longa noite de sexo, que no final se traduz na mais genuína sinceridade, quando a mulher conta ao marido que passou a noite inteira com o homem que o havia paralisado, supostamente, anos antes). Tudo parece acabar em adormecimento, sangue e distância. No entanto, à cena inicial de aflição, pressa e desenrasque, numa Espanha franquista, opõe-se a cena final, de felicidade, calma e redenção, numa Espanha democrática. Viver, morrer, é sempre ter esperança.



Termino o tema da morte com uma obra que considero subvalorizada na blogosfera, Voltar, e cito o autor, " (...) é precisamente sobre a morte (...)". O registo é completamente diferente de Matador e Carne Trémula, e a evidência surge logo nos primeiros minutos de película, com uma extraordinária e animadíssima cena (actores, música e cores) num funeral, em pleno ritual de cuidar do cemitério e das campas - uma peculiar forma de lidar com a situação, que é resultado de fragmentos autobiográficos do autor, em relação às convicções religiosas da sua zona de La Mancha. A partir daqui viajamos por um extraordinário argumento (muito premiado), em que oscilamos entre a completa paródia e o drama lacrimejante, passando por pontos em que não há outra hipótese se não equilibramo-nos entre um e outro e resolver cair para o lado para o qual a nossa personalidade nos empurrar. Como pano de fundo, estão sempre os vivos, ainda que se fale de mortos, porque já o foram antes, porque o foram primeiro, de onde os sucessivos "vai e vem" entre o passado e o presente, através de uma mãe que devia estar morta, mas, da forma mais irónica e indiferente possível, não está e de uma estória familiar de paixão e fim da vida muito mal contadas. Um marido e pai de família, bêbedo, preguiçoso e predador sexual que acaba assassinado pela filha, que é encoberta pela mãe (magistral performance de Penélope, neste filme), uma amiga com cancro. É também ele um hino à força da mulher, como tantos outros que Almodóvar canta ao feminino.
Vejo aqui uma obra divertida, de certa profundidade (qual é a maneira certa de encarar a morte ? Veja-se a ironia de ter um corpo numa arca frigorífica e dar festas no mesmo local) e extremamente empolgante e envolvente. Não é o melhor de Almodóvar, mas não consegue ser menos do que bastante bom.

10 comments:

  1. Desses não vi o MATADOR, dos dois restantes prefiro EM CARNE VIVA. VOLVER é bom, mas não tão bom como alguns dos meus favoritos: EM CARNE VIVA, MÁ EDUCAÇÃO ou FALA COM ELA.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

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  2. Adoro estes teus artigos de análise a um realizador. Os do Fellini estavam incríveis e este é mais um da mesma qualidade.


    Almodovar é talvez o meu realizador preferido da década. Não é por nada em especial, mas não consigo imaginar mais ninguém que tenha sido tão consistentemente bom em todos os filmes que fez.

    Tenho algumas obras mais antigas dele para ver (comprei recentemente duas que me faltavam, PEPE LUCI BOM e LABIRINTO DE PASIONES) mas até agora tudo o que vi dele é excepcional.

    VOLVER não é dos melhores dele, concordo, mas acho que é muito menos valorizado do que o que merecia. E a Penélope Cruz é qualquer coisa de genial.

    Dos anos 80, o meu favorito é mesmo LA LEY DEL DESEO e dos anos 90... A abrir ATA-ME! DESATA-ME! que é de 1990 e a fechar TODO SOBRE MI MADRE que é de 1999. E obviamente que desta década gosto mais de HABLE CON ELLA e LA MALA EDUCACIÓN, que o Roberto já tinha referido.

    Abraço,

    Jorge Rodrigues
    http://dialpforpopcorn.blogspot.com

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  3. Um grande obrigado pelas tuas elogiosas palavras.

    Nesta rubrica não falarei do ATA-ME, mas falarei da Ley, do Todo Sobre, do Hable e do Mala Education.

    É-me difícil escolher favoritos, mas num top 3, Hable, Todo e talvez Matador.

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  4. O Matador é dos poucos que ainda não vi (mas estou ansioso por fazê-lo); o Carne Trémula gosto mas não é dos meus preferidos; o Volver é bom.

    Já viste o Má Educação?

    Parabéns pelo texto, pela análise. Vou continuar a acompanhá-las. :)

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  5. Obrigado, Flávio ;)

    Vi sim senhor, escrevo sobre ele amanhã ou no dia seguinte - não me espanta a tua pergunta, conheço a tua admiração por ele. Talvez fiques contente por saber que, quando disse "mas num top 3, Hable, Todo e talvez Matador.", o "talvez" está exactamente porque o Má Educação poderia ocupar o lugar - ou seja, adorei.

    Abraço.

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  6. Ena, fico contente sim, então :D Espero ansioso o texto.

    Abraço, Diogo

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  7. O Almodar continua a ser o meu realizador preferido...amo!

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  8. DORA: Não consigo ter um realizador preferido, mas este é, sem dúvida, dos meus favoritos e dos que mais sinto que me influenciaria se fizesse um filme.

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  9. Apesar das criticas, eu gostei muito de Volver - tão belo e a atuação de Penelope se sobressai, completamente. Parabéns pelo texto, consegue captar bem a premissa de filmes marcantes como Carne Tremula, abraço

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  10. CRISTIANO CONTREIRAS: É, de facto, também considero a intensidade das críticas feitas a Volver um pouco injustas - está subvalorizado. Obrigado :D

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