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Saturday, November 6, 2010

EFF'10: Primeiras curtas de Roman Polanski (1955-1961)


No final da primeira sessão do Estoril Film Festival a que o A Gente Não Vê assistiu, uma conclusão ergueu-se e fundamentou toda uma já construída opinião sobre o realizador polaco, Roman Polanski: é um génio desde, pelo menos, 1955.

Foram várias as curtas-metragens a que assisti e, enquanto que não houve nenhuma de que não tenha gostado, há duas que considero que são verdadeiramente extraordinárias: Bad Boy (Dois Homens e um Armário) e A Passer By (sem tradução).

A primeira conta a história de dois homens que encontram um armário banal, cuja única particularidade é ter um espelho incrustado, que se envolvem numa série de peripécias para tentar vender o seu achado, sempre sem sucesso, acabando por sofrer castigos físicos frutos do puro azar. Tem um certo tom cómico mas o drama é especialmente evidente na cena final, um paralelismo com a cena inicial (algo que se viria a tornar algo trademark, como as mãos a tocar piano, no início e no fim do The Pianist), em que voltam ao mar, para deixar o armário, acabando por desaparecer os dois, de repente, debaixo de uma onda. Adianto que estes breves minutos nos brindam com uma cena de puro génio cinematográfico, entre outras também muito boas: um homem está a ver-se ao espelho do armário - parece que finalmente alguém lhe descobriu uma utilidade. Porém, logo a seguir, mudam o armário de sítio e por trás do armário estava outro espelho - o homem não reage e continua simplesmente a ver-se ao novo espelho.

A segunda já emana Polanski. Durante um inverno frio (algo tão bem retratado), um velho arranja bonecas. As imagens são aterradoras - braços, pernas, corpos, olhos, caras sem olhos, nem boca, nem cabelo. Muitas sombras, projectadas por uma humilde lâmpada e ainda assim desfocadas pelo fumo de um cigarro. O cuco assustador dá o final do dia e o velho sai. Ainda menos luz, quando o dono da loja, do lado de fora, tapa as janelas com pedaços de madeira. Sussurros assustadores invadem a pequena sala (são as aterradoras bonecas) e tudo começa a arder. Lá fora, neva. As pessoas passam e, na noite, apenas se distinguem duas faixas de luz (do fogo), de dentro da loja, que não são tapadas pela madeira velha.

Friday, November 5, 2010

Redactor convidado: Ivan Detstvo / A Infância de Ivan (1962)

Foi com alguma hesitação e com um envergonhado sorriso no rosto que Alexandra Corte-Real de Almeida, uma amiga, cinéfila como todos nós, acabou por aceitar o meu convite para fazer um texto sobre a sua perda de virgindade tarkovskiana, um momento marcante para qualquer amante de cinema.


O seu extâse, pelas suas palavras.

"Foram muitos os filmes que já vimos, nos cinemas e nas televisões, sobre a II Guerra Mundial, cada um tratando o tema sob uma perspectiva diferente, cada um com o seu próprio enredo interior e cada um, no geral, acentuando à sua maneira as consequências irreversíveis e avassaladoras que um conflito deste calibre tem. Pois bem, atrevo-me a dizer que o primeiro filme de Andrei Tarkovsky veio transcender qualquer visão sobre a guerra que eu já possa ter ponderado.

Em primeiro lugar é de realçar o facto de ser sob o olhar de uma criança que conhecemos o desastre que se fez sentir em terras russas.
Ivan, um menino de 12 anos que deambula entre a inocência do mundo onírico a que se agarra e a realidade tão mais vil e escura que tem em frente é órfão de pai e mãe e tentando fugir à Escola Militar ingressa nos Serviços Secretos Russos onde sente que poderá fazer algo pela guerra que encara. É a força vinda da ingenuidade de um rapazinho que teve de se adaptar e lutar contra (ou com) o duro contexto que lhe foi imposto que torna a película de Tarkovsky fascinante. Em paralelo ao percurso de Ivan assistimos ao comportamento dos adultos que o rodeiam e às relações que entre si estabelecem e que de certo modo contrastam com a simplicidade do protagonista, que apesar de condicionado pelo seu meio, não está ainda contaminado por esse.
Mas nunca é só no argumento e na premissa que reside a grandeza de um filme como este. É de louvar em Tarkovsky a sua capacidade de fazer a imagem e a forma como a capta falar por si só através das cores contrastantes e da iluminação sugestiva. Peguemos no exemplo dos sonhos que Ivan tem, nomeadamente com a mãe, todos carregados de uma simplicidade enternecedora que só sentimos graças aos tons cinzento claro e brilhante que acentuam a acção e fazem o espectador envolver-se mais facilmente e sentir-se, ele próprio, quase num sonho. Ou ainda, e como oposição, temos por exemplo as cenas em que vemos os vestígios da guerra e nas quais sentimos o pesar das cores escuras e das sombras que as cobrem. E, dando também a importância que o som tem ao deste filme, de realçar é a banda sonora escolhida a rigor, através da qual conseguimos quase de olhos fechados distinguir o mundo onírico do mundo real sem que isso nos seja mostrado como óbvio.

E é nessa completude de vertentes que A Infância de Ivan cresce a cada segundo até culminar num final que a meu ver não é se não perfeito muito embora triste e que sugere toda a inocência e simplicidade da infância que existe sempre em qualquer circunstância, por mais dura que seja, e que me deixou até nostálgica.

Porém, parece-me impossível escrever sobre Tarkovsky fazendo-lhe jus. Este filme deve, na realidade, ser tomado como o todo poético que é. Mais do que pensado e analisado tem de ser sentido para que o absorvamos na sua plenitude e com ele nos sintamos plenos também. E é nessa dimensão que se entende que a ligação que se estabelece com o cinema vale não só pelos elementos que compõem o filme mas essencialmente pela conexão de uns com os outros que fazem, neste caso, o todo maior e mais forte que a parte. E sem dúvida que, ver a Infância de Ivan, me veio provar isso mesmo instalando-se em cada bocado de mim e transformando-me com a sua própria transformação."

Wednesday, July 28, 2010

Fellini e a exuberante sátira social: La Dolce Vita (1960) e Satyricon (1969)

Nunca deixam a sátira social ou o retrato autobiográfico de fazer parte das obras de Federico Fellini e foi por isso que, no início desta curta incursão pelo realizador italiano, referi que não seria completamente coerente uma divisão da sua filmografia como a que estava prestes a fazer. Escolhi estas duas obras em especial para tratar a crítica do autor à mundivivência humana pela sua particular beleza visual, pela exuberância das suas mis-en-scene pelo seu flutuar entre a realidade e a fantasia do sonho, pela sua sublimidade da dormência (A Doce Vida) e do conto de fadas (Satyricon). Em ambos: a devassidão do humanismo, a decadência moral.

A Doce Vida é o meu filme favorito do autor, um dos que mais me marcou. Um retrato directo mas subtil, simples mas profundo, realista mas esteticamente belíssimo e fantasioso, da sociedade da altura que, no fundo, é ainda a sociedade em que hoje vivemos - a sociedade contemporânea. Através de uma rápida e por vezes confusa sucessão de dias e noites, acompanhamos Marcello, um homem normal, demasiado normal, algo que faz dele um deambulante terreno e espiritual, deliberadamente procurando por um sentido a dar à sua vida em cada gesto, cada expressão, cada acção, cada conversa, cada nova relação. Não se lhe aponte o dedo por suposto egoísmo com que parece carregar melancolia e aflição da inexistência de propósito para a vida, já que é assim que deixa de ser ele próprio para reencarnar toda a humanidade - não sabemos de onde vimos, nem para onde vamos, nem o que é o universo ou coisa que o valha.
Para escapar a esta aterradora visão do mundo, a este gélido e metálico tubo por onde discorrem os anos que nos levam a navegar pelos mares da vida, Marcello junta-se à classe alta, enverga as suas vestes, segue os seus propósitos, alimenta-se das suas ideias e ambições, divaga pelo seu mundo, tudo sob a capa do jornalismo e da reportagem, acabando por imergir completamente num mundo que, não sendo o seu, como não o era do primeiro Homem, dele não pode sair, como lá estão presos os últimos Homens, que até agora somos nós. E que mundo é esse, pergunta-se. Um mundo decadente, não imoral, porque para isso teria de perdurar o sentido de Dever, mas sim amoral, de uma superficialidade assustadora, cuja reflexão se reduz à luz e ao brilhante dos colares e das pulseiras reluzentes.
Encantadoras vestes, ofuscantes cenários e intensas correrias marcam a pintura e o ritmo do filme, das festas, da futilidade e da devassa da vida privada, da forja dos milagres pela igreja, sob protecção da capa da incapacidade crítica de uma população mecânica. Faiscantes relações, em intensidade e duração, ou não ficássemos nós tão confusos como Marcello, debatendo-se com a sua mulher, algumas prostitutas e com a sua única salvação, a inocente e pura (a única, no filme) Sylvia, com a qual protagoniza a magistral e eterna cena da Fonte de Trevi, mas que acaba por se revelar submissa a um marido autoritário. Nem a família, a riqueza e a poesia nos podem salvar, ou não fosse aquele que as sustentava todas suicidar-se, para desgosto do nosso personagem, que não só o desejava, como o idolatrava.
Na orgia final culmina todo este sentimento e esta mentalidade em que vivemos - o prazer rápido e eficaz, industrial, a luxúria pouco exigente, a bebedeira do intelecto e da existência. Contra isto, apenas surge uma tentativa de troca de palavras com uma pequena rapariga, eventualmente o segundo raio de pureza que surge no filme, tentativa essa que se dilui e espalha pelas emaranhadas redes da já sedimentada incomunicabilidade do homem.

Satyricon, baseado num dos únicos romances conhecidos e recuperados da época do domínio romano, escrito por Gaio Petrónio, é uma uma sátira social e política que se constrói e vai erguendo por meio de degraus ora cómicos, boémios e divertidos, ora tristes, profundos e alarmantes.
Sucedem-se episódios aparentemente descontextualizados, sem uma linha de continuidade, a não ser o pano comum da luta de Encolpius e Ascyltos, dois jovens esbeltos, pelo amor de Giton, um pré-adolescente suave e delicado. O desejo sexual nunca é escondido e acaba depois por fluir para relações com terceiros e entre todos eles, mas o seu retrato, como todo e qualquer retrato ou referência nesta obra, nunca é explícito, cru ou minimamente relevante. Desta vez, a câmara de Fellini preocupa-se não apenas com a imagem mas também com a ideia do sentimento e da emoção. Por entre épicas peripécias e eventos mais ou menos bizarros, inspiração meramente histórica ou fantasiosamente mitológica (a Hermafrodita ou o Minotauro), esbate-se o contraste entre o Deus e o Homem - onde chegou a humanidade, que desafia o Olimpo, sem que a cólera de Júpiter sequer se revele ? Já estarão cansados de nós ? - e acentua-se o contraste entre os Homens - a eterna luta de classes, os banquetes dos ricos na presença dos pobres, a escravatura.
Depois do combate, da loucura, da cáustica luxúria, da bravura, do sucesso e do falhanço, depois da vida e da morte, chega a altura de Encolpius, e nós com ele, partimos para outra Terra, lá longe, que, por não a conhecermos, não nos aquece o intelecto mas nos gatilha a esperança.

Monday, July 19, 2010

Fellini, a representação autobiográfica e o sonho: I Vitelloni (1953), Otto e Mezzo (1963), Amarcord (1973)


Verdade seja dita: não é possível, ou sendo, não é totalmente exacto compartimentar a filmografia do mestre italiano desta forma tão estrita, já que outros filmes de que aqui falarei, como Roma e Satyricon, também muito devem ao animado e colorido sono e à personalidade do director. Esses, porém, tratá-los-ei a propósito de outra temática.

Em Os Inúteis acompanhamos as vidas de cinco jovens adultos cuja participação na sociedade não se pode sequer reduzir a uma busca pela diversão, já que essa mesma é, em si, frustrada, restando-lhes os caminhos pelas estreitas e escuras ruas da deambulação eterna. É assim que começam e é assim que Fellini os trás ao ecrã por várias vezes, em ruas desertas, escuríssimas, cujo negro contrasta com fortes focos de luz vinda dos antigos candeeiros, seguindo sem destino, gargalhando sem piada, reflectindo sem tema. Da mesma forma que os absorvem e envolvem as paredes dos antigos prédios que ladeiam e limitam essas ruelas, também assim a vida lhes vai concedendo poiso - de forma tristemente solitária, com enganadores focos de jubilo. É isto que se volta a sentir no contraste entre o silêncio e a tranquilidade quase assustadora que se sente de cada vez que uma personagem sai à rua e a exuberância, o barulho e a escandalosa euforia de cada festim que acontece.
De todas as personagens, o maior símbolo da vivência sem propósito, da existência sem valores, da decadência moral (ainda assim, um retrato longe de ser perturbantemente nietzschiano) é Fausto, um homem que engravida uma inocente, bela e jovem rapariga (Sandra) e que, ao mesmo tempo que parece viver com ela uma feliz relação de marido e mulher, enquanto procura emprego e durante o tempo em que sustém um, não consegue, por meio algum, resistir à luxúria, à curiosidade mórbida de umas novas pernas de mulher, nem que, para isso, tenha de hipotecar a sua felicidade e a dos outros (dos amigos, do pai, da mulher, do filho).
Para eles, a vida não muda e não mudará nunca. A única excepção é Moraldo, irmão de Sandra, que até aos últimos momentos da película em nada se opõe aos devaneios espirituais e carnais do cunhado, à sua completa indecência para com a o mundo honesto (ajuda-o a roubar o antigo patrão) ou à sua caminhada sem destino à vista. Decide que assim não poderá continuar e acaba por partir numa viagem para um novo começo, para uma nova vida, submetendo-se à triste despedida do seu único amigo interessado pela vida (o pequeno Guido), num brilhante momento de cinema autobiográfico em que, à janela do comboio, se ouve a voz de Fellini discorrendo da boca do personagem, "Ciao, Guido.".

Durante cerca de 30 anos, Federico Fellini registou num pequeno diário todos os sonhos que foi tendo, através de palavras, desenhos, pinturas - aí se encontravam representados, descansando tranquilamente, à espera que lhes dessem vida, todos os seus mais íntimos, bizarros e excêntricos desejos, paixões, medos e terrores. É a partir destas mágicas folhas, que hoje em dia se encontram compiladas na obra "Federico Fellini - The Book of Dreams" (ainda sem tradução portuguesa), que o mestre vai, a partir da década de 60, criar algumas das mais bonitas obras de arte que ainda hoje existem, belas composições e concatenações entre a poesia do cinema, da música, da pintura, da fotografia e da arte plástica.












Em Oito e Meio assistimos a uma incrível explanação e representação do inexplicável e irrepresentável drama da criação artística, enfrentado por qualquer músico, escritor, pintor ou cineasta numa ou em várias alturas da sua vida.
O drama consiste exactamente em não conseguir gerir uma mente cheia de tudo mas inundada num nada agoniante. Uma confusão de pensamentos, reflexões, imagens, ideias, sons, cenários, situações que se emaranham uns nos outros, que logo de seguida tentam seguir o seu caminho individualmente, que voltam atrás antes de começarem a seguir para a frente, que começam a meio e que não acabam no fim.
É precisamente isto que Fellini nos mostra e é exactamente com esta sensação que nos deixa. Acompanhamos Guido (em magistral interpretação de Mastroianni), um realizador de cinema que vive no extasiante mundo do sucesso artístico, mas que, desta vez, não sabe o que fazer. Por entre cenários reluzentes, ricos e espalhafatosos, olhando e conhecendo estranhas personagens, umas verídicas outras nem tanto (incluindo a mulher e o produtor), que lhe esmagam o espírito com a pressão em relação a um novo filme, fantasiando e desejando sobre antigos amores que nunca chegamos a saber se alguma vez teve ou se apenas vem caprichando desde sempre, assistindo a deslizes sobre cordas, rodopios sobre rodas, pernas, braços, sorrisos, cantos, luz, muita luz, tudo é drama, tudo é confuso, tudo é aflitivo e tudo parece significar o fim de uma carreira. É inevitável chegarmos ao ponto em que não sabemos o que se está a passar e o que faz parte do dilema da nossa espiritualmente sofredora personagem, do seu sonho, do seu desorganizado imaginário, para o qual contribui a serena e pautada voz do actor principal, que muitas vezes nos acompanha em tom quase documentarista, um narrador participante, enquanto o som do que se passa no filme baixa subtilmente, levando-nos a mergulhar ainda mais profundamente numa consciência que não é a nossa.
Até à cena final ... em que, subitamente, vários actores, vestidos com estranhos fatos, caminham, correm e dançam, atrás do realizador. Finalmente conseguiu harmozinar a orquestra e está pronto a comandar o barco. Brilhante, um dos maiores filmes que já vi.














Com tradução para "Eu lembro-me", Amarcord é a mais literal das autobiografias do autor. É, uma vez mais, com um argumento aparentemente desconexo, recheado de eventos tanto bizarros quanto cómicos, através de uma atmosfera incrivelmente harmoniosa, luminosa e nostálgica que Fellini nos brinda com as mais estranhas personagens, certamente marcantes na sua infância (o adolescente que mais nos aparece é baseado num amigo de infância), e que o continuam a assombrar nos seus sonhos. Desde um avô que balança entre o velhinho confuso e o folião, um pai autoritário, uma mãe defensora de um filho, uma prostituta louca e ninfomaníaca, um tio doido varrido ("Io vogglio una donna!"), uma peixeira gordíssima, retratada como uma autêntica sedutora, terminando na bela e desejada Gradisca, todas as falas, relações e sentimentos nos aparecem como uma tentativa do autor de nos comunicar algo sobre si e sobre os seus primeiros anos.
Nunca esquece a sátira ao Il Duce ou aos métodos de educação da altura - na escola e em casa. Tudo se passa no espaço de um ano e assistimos à rotação das quatro estações ("When the puffballs come, cold winter's almost gone."). A este retrato da inevitabilidade cósmica, alia-se um esboçar de vários eventos cómicos sem ligação, que não se conseguem encadear logicamente, que não constroem uma estória, exactamente porque a vida é assim - uma sucessão de eventos derivados do destino, do efeito borboleta, da sorte, dos outros, muito mais do que um encadeamento pragmático de opções. E, como todas as vidas, assim foi a vida de Fellini.

Thursday, June 24, 2010

Os Filmes dos Presidentes II - Jorge Sampaio

Il Gattopardo / O Leopardo (1963) é um longo mas belíssimo retrato da queda da aristocracia siciliana durante o Risurgimento, movimento de unificação da Itália.

O trabalho fotográfico é magnífico, imprimindo uma película em tons quentes (castanhos, vermelhos, laranjas, amarelos), que se dignam até a revelar um balanço entre o campo de acção dos revoltosos e a alienação em que continua a viver a nobreza. De um lado a terra, a poeira, o sacrifício de sol a sol, os tijolos das ruínas em que se abrigam, os próprios uniformes; do outro, o sol na paisagem, um fabuloso trabalho de decoração e costura - os panos vermelhos, o ouro, o requinte, os vestidos das mulheres, as decorações. A isto se alia uma câmara muito natural e várias boas prestações dos actores, sempre incrivelmente corteses, mergulhando a obra numa estranha concepção realista. Estranha porque se trata de uma sociedade de há 100 anos, não podendo nós deixar de acreditar que foi assim mesmo que tudo se passou. A mis-en-scene é, neste filme, perfeita. A música, durante todo o filme, é deliciosa.

O Príncipe de Salina é a personagem central deste reflexivo romance histórico, cujas acções vão muito para lá de uma preocupação superficial e materialista em relação à condição da sua família. Se o mais perceptível fio condutor da narrativa nos leva a vários bailes e festas da alta nobreza, a arranjos mais ou menos elaborados, mais ou menos requintados, de romances efémeros (Concetta e o soldado) ou amores eternos (Tancredi e Angelica - um belíssimo retrato, diga-se), estão sempre implícitas (e por vezes explícitas) valorosas reflexões de filosofia política.

A ideologia. Tancredi junta-se à revolta gilardina, ainda que sem qualquer censura por parte de uma família defensora da manutenção do estado de coisas, para mais tarde acabar por se aliar ao exército real, por ter mais condições. Esta mudança de atitude é quase imperceptível quando volta do combate, em que apenas se nota diferença no uniforme algum tempo depois da sua chegada, mas aguça-se quando defende, com indignação, a morte dos desertores do exército real - se foi contrário ao que fez, em sentido, não o foi, certamente, em direcção. Com que modelos, com que ideais, com que convicções temos legitimidade para defender uma causa ? Uma disputa entre a honra e a lealdade e a segurança (material) e estabilidade (emocional).

A ruptura de uma ordem social e o surgimento de novos paradigmas. Se nos perguntarmos sobre a razão pela qual o Príncipe tão serena e amigavelmente compreendeu e não se opôs à adesão à revolta por parte de Tancredi, encontramos a resposta nas suas palavras: "Para que tudo se mantenha como está, é preciso mudar as coisas.". Talvez por o próprio Visconti ter pertencido à aristocracia, não podemos deixar de interpretar aqui e em todas as imagens, uma certa nostalgia pela mística que envolve a realeza, algo que, em 63, acabou e não volta mais. É por isso que o chefe da família, completamente ciente disto, mas não descurando os problemas que criaram a crise política em que se vive, se sente no dever de se manter fiel ao seu brasão, às suas tradições, à sua história, esperando, paradoxalmente, um triunfo da mudança. A mudança nunca manteria as coisas num sentido literal, mas evitaria sim que um reino, uma família e um povo caíssem na miséria da vergonha e do esquecimento - a preservação da história (ou não fosse o Homem feito de memórias). E novas questões se levantam, como quais os fundamentos da ruptura, a legitimidade da mudança e o papel de cada um como catalisador, travão ou moderador.

"Nós éramos os leopardos, os leões; aqueles que vão tomar o nosso lugar serão as hienas, os chacais; e uma parte de todos nós, leopardos, chacais e ovelhas, continuará sempre a ver-se a si mesmo como o sal da terra."