Tuesday, June 1, 2010

Lars von Trier - Trilogia "Europa"

A trilogia "Europa" é o conjunto das três primeiras longas-metragens do realizador dinamarquês, que não se identificam pela estrutura narrativa, mas sim pela técnica (a introdução da rear projection) pelo estilo, filmagem e efeitos (Europa seria o percursor de The Schindler's List) e pelo sempre presente herói que acaba por contribuir para o triunfo da desgraça. Em todos os três filmes, muito especialmente em Europa e em The Element of Crime, somos envolvidos numa profunda reflexão sobre as motivações, as ânsias, as dúvidas, sobre todo o psicológico do nosso personagem principal de uma forma brilhante, no limite do mágico.



3. Epidemic / Epidemia (1987)

Protagonizado por von Trier e por Niel Vorsel, este filme conta a estória de dois argumentistas que escrevem um argumento sobre uma terrível epidemia que se abate sobre a Europa e se propaga a uma velocidade assustadora, sem qualquer antídoto em perspectiva. Na sua imagem a preto e branco, a claridade como maior fatia da cinematografia e uns tons de verde azulado deixam transparecer uma atmosfera realmente doente. Paralelamente ao trabalho dos argumentistas, assistimos ao filme que estes vão escrevendo: um médico idealista rompe com as correias da racionalidade que os seus colegas sobreviventes tentam impor-lhe, para se lançar numa utópica corrida pelo salvamento de inocentes.
O filme, em si, não nos diz muito e diz-nos muita coisa. É considerado um dos maiores auto-retratos do realizador, sem que se compreendam muitas das suas incursões. Consegui achar alguns pedaços de humor, em alguns diálogos entre as duas personagens principais e senti que a pressão que os dois sentem ao ter de escrever um argumento com pouco tempo contribui, juntamente com aquele sentimento de não saber bem o que quer dizer o filme, para reconhecer validade a uma declaração de Lars von Trier: "um filme deve ser uma pedra no sapato.". Na verdade, fiquei mesmo com um nó na garganta, depois de ver este.
O nosso herói acaba por contribuir para o mal que quer eliminar, já que o médico da estória dentro da estória acaba por descobrir que é ele mesmo que propaga o vírus. Não chegasse isso, no final da estória fora da estória, assistimos a uma aterradora visualização da forma como uma epidemia surge na vida real, como se fossem os próprios cineastas os criadores de todo o mal.
Perturbador.



2. The Element of Crime / O Elemento do Crime (1984)
Uma obra extraordinária sobre a eterna dicotomia entre a realidade e a fantasia, edificada sobre a loucura de um homem e sobre o rasto de morte que persegue e que acaba por o consumir. Ficsher (Michael Elphick) está no Cairo a contar, sob o efeito da hipnose, a sua última experiência na Europa, para onde foi chamado para resolver um crime hediondo. A pausada e serena voz do narrador e de Fisher, quando começa a contar a sua história, e as indicações do hipnotisador, deixam-nos logo em modo de partida para uma apreciação do filme em estado intencionalmente dormente. A cor do filme, sépia com intensidade no amarelo, o constante recurso à imagem e ao embalador som da água a escorrer ou a cair, envolvem o espectador na profunda, perturbada, confusa e melancólica consciência do personagem principal, passando por cenários surreais e pouco aprazíveis, num distópico continente fustigado pela Guerra. Nunca sabemos bem o que faz parte da realidade e o que faz parte da sua imaginação, moldada pela traumática experiência que viveu (por exemplo, a associação da imagem do burro à fantasia e a sua aparição ao longo do filme).
Fisher conta que voltou à Europa para resolver um crime que, vem a perceber, em muito se assemelhava aos "crimes da lotaria", uma série de assassinatos perpetrados havia alguns anos. O método que segue é o de Osbourne (Esbound Knight), seu antigo mestre, o grandioso teórico da Criminologia que havia editado o livro "O Elemento do Crime", sobre como a entrada na pele do criminoso é a chave perfeita para a resolução de um caso. Osbourne está velho e louco. Afirma que Harry Grey é o autor dos massacres, com base num velho relatório elaborado pelo mesmo, três anos antes do primeiro crime. Porém, Grey terá morrido antes desse primeiro crime, num acidente em que Osbourne estava presente. Como é possível ? Não será isto fruto de uma ameaça de Harry ? O que sabemos é que a alma do antigo professor não mais aguenta o facto de achar que apenas contribui para o desabrochar da criminalidade, acabando por se suicidar.
Fisher decide perseguir Harry Grey sendo Harry Grey. Procura os mesmos lugares, dorme nas mesmas camas. A certa altura, encontra Kim (Me Me Lai), uma prostituta, com quem tem um sexo ao mesmo tempo frio e intenso, em circunstâncias que novamente nos fazem duvidar da veracidade da estória do polícia, e que contribuem para associarmos a personagem a uma alma vazia. Kim ajuda-o a entrar no papel do assassino, dando-lhe uns comprimidos para reproduzir as suas enxaquecas, atirando Fisher para um novo nível de sofrimento, desta vez físico. Por diversas vezes, lembra que "Harry Grey passou metade da noite com a Kim", claramente referindo-se à nossa personagem. Será assim mesmo ? Julgo que sim, acabando por ser um indício do fatal fim que se aproxima: Fisher descobre que Kim dormiu mesmo com Harry Grey; aliás, tem um filho dele. "Harry Grey passou metade da noite com a Kim.". A esta altura Fisher já é tão Harry Grey como o próprio. Ao vestir-se do criminoso, não conseguiu nada se não sê-lo - a prova disso é a relação com a prostituta. Como um louco, assoma à janela e dispara vários tiros para o além, exactamente como fez Osbourne da última vez que o vemos com vida, já em delírio, num cume do êxtase de histeria.
O final parece quase inevitável. Fisher acompanha uma rapariga pequenina a um local onde esta deve encontrar-se com o criminoso, sozinha, para que ele lhe compre muitas "raspadinhas". As centenas de garrafas no chão do local de encontro, perfeitamente dispostas, evidenciam, uma vez mais, o carácter surreal da estória. Após alguns momentos de suspense, sons. Um amuleto, em forma de cabeça de burro, o símbolo do assassino, cai do bolso do nosso herói, que apenas o guardava como prova. A rapariga, apavorada, julga estar perante a encarnação da sua sina e Fisher, consumido pela cegueira e pela obsessão do homem em que tentou transformar-se, torna-se ele mesmo o desprezível monstro que tenta destruir.



1. Europa (1991)
Um jovem rapaz, Leopold Kessler (Jean-Marc Barr), vem de uma acolhedora América para uma Alemanha completamente destruída pela Guerra, onde o desemprego e a inflação fustigam toda a população e onde as doenças se propagam. Os segundos iniciais em que somos conduzidos, em primeira pessoa, por uma linha de ferro, são acompanhados por uma característica voz de serenidade, que nos prepara para o que vamos ter quando chegarmos "à Europa", quase empatando a nossa expedição, tentando fazer-nos parar.
A imagem está quase sempre a preto e branco, com o grande papel das tenebrosas cenas na caracterização grotesta do continente a que chegamos. Kessler vai trabalhar para os caminhos-de-ferro para ajudar a reconstruir o país de onde partiu. Na verdade, o desenvolvimento dos transportes é um dos pontos fulcrais para a recuperação social e económica da ex-potência mundial, que assume, desde logo, uma nova filosofia de cooperação e união, ao empregar um estrangeiro apesar os inúmeros desempregados nacionais que vão desesperando.
Mas a paz não vive descansada. Os lobbies contornam as novas regras e a resistência nazi ainda se faz sentir. Max Hartmann, dono da companhia ferroviária onde trabalha Kessler, a Zentropa, consegue a cooperação de um judeu, num processo de inspecção, para se livrar de possíveis acusações de colaboração com o III Reich, mas apenas até se suicidar. A cena é absolutamente brutal, com o sangue a transbordar da banheira e a fluir até ao corredor, para terror da sua filha Katharina e de Leopold. O resultado de uma consciência pesada, que nos deixa a balançar entre a o contentamento pelo castigo que sofre, e a complacência com o arrependimento profundo que revela sentir. É este último que acaba por prevalecer, com a luta clandestina que várias pessoas têm para garantir um funeral digno ao empresário.
Depois da cena da banheira, são as cenas entre Leopold e Katharina aquelas em que surge a imagem a cores, um reforço da emoção, da esperança que pode emergir. Uma paixão que brota e que admite sobrepor-se a todas as dificuldades, com a cena de sexo em cima de uma linha de comboio em miniatura simbolizando, julgo eu, a superioridade da sua relação a qualquer guerra, a qualquer reconstrução, a qualquer intriga ou traição.
Tudo acaba por complicar-se. Sem querer, Kessler é cúmplice no assassinato de um político da confiança dos aliados. A confusão instala-se no seu interior e o medo eleva-a ao estado de loucura quando os Werewolf, resistência nazi, raptam a sua amada, exigindo que coloque uma bomba no comboio, aquando da passagem numa ponte.
É a partir daqui que assistimos aos verdadeiros desafios do nosso personagem. Chega como herói e tem de sair como mais um dos cultores da desgraça. Chega como um romântico enamorado e tem de sair um desgraçado viúvo. Chega como um estagiário promissor e enfrenta um exame que não consegue levar a sério, por tudo o que o perturba. Agora, tudo se passa num comboio, um espaço fechado mas em contínuo movimento, criando a dicotomia entre a claustrofobia, o destino fatídico da perda a que não pode fugir (ou o seu amor ou a sua dignidade/lealdade/patriotismo) e a estrada infindável, a esperança de um novo rumo.
O twist final é absolutamente fantástico. Katharina era ela mesma um membro do grupo nazi Werewolf, ainda que lute por autonomizar a influência que deveria exercer sobre Leopold do amor que acabou por sentir por ele. Desesperado, louco, finalmente deixando para trás a ingenuidade que o trouxe à Europa, confrontado com um mundo cínico, hipócrita e sedento de poder e vingança, depois de assaltado na sua última esperança, desiste de desactivar a bomba que lhe havia toldado o espírito e voltado a iluminar a alma (a certa altura vai tentar voltar atrás), para deixar acontecer a explosão. Morre afogado, em mais uma sequência em que o narrador nos tenta absorver para o local, contando até dez e deixando-nos antecipar a dolorosa morte - a contagem vai em 6 e já sentia aflição.

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