A cena com que se abre aos nossos corações e à nossa mente é de uma beleza e de uma fluidez de sentidos indescritível, anunciando-nos, através da dança, numa coreografia de Pina Baush, toda a estória do filme, que é a estória do Homem numa essência etérea, superior a Adão e a Eva, acima do Éden - duas mulheres, com os seus vestidos oscilantes, quase como fantasmas, vagueiam instáveis por uma sala repleta de cadeiras, num constante vai e vem, cadeiras apenas desviadas por dois homens que surgem no palco. É esta a representação de Benigno e Marco, como moldadores dos caminhos de Alicia e Lydia, uma cooperação eterna, inevitável, enquanto, na plateia, Marco chora emocionado, revelando que os homens também choram e isso já não pode mais diferenciar o sexo masculino do feminino.
É enquanto Alicia e Lydia estão em coma que os dois homens se conhecem, se tornam companheiros de sentimentos e, juntos, aprendem sobre mulheres. Mas esta aprendizagem não é puramente prática, analítica, esquemática. As duas, em coma, estão num estado pouco conhecido por nós, balançam entre a vida e a morte, uma viagem feita por poucos, e flutuam numa condição quase metafísica - é exactamente assim que assistimos à impossibilidade do masculino em viver sem o feminino, perpetuando-se uma cuidadosa guarda de uns em relação aos outros, cada um influenciando o outro (pois a inactividade de Lydia e Alicia também trilham os caminhos de Marco e Benigno, eles prendem-se e elas prendem-nos). Falar com elas, é a solução.
Através de um argumento incrivelmente original, pautado pelo flashback, ficamos a conhecer o surgimento de duas relações de identificação, da sua destruição, das alegrias que comportam e das tragédias a que levaram - a consequência entre a separação entre um homem e uma mulher pode ir desde a desistência melancólica e passível de doloroso arrependimento, à obsessão mais doentia e desumana (Benigno engravida Alicia, em coma).
As mortes que surgem antes do final da película são acompanhadas pelo surgimento de nova vida, criando um ambiente dramático e evidenciador do equilíbrio existente entre os sexos, numa comunhão que nos ultrapassa, sempre ultrapassou e sempre ultrapassará (a cena do filme mudo representa tudo isto de forma magistral). Os homens são iguais aos homens, as mulheres são iguais às mulheres, os homens são mulheres, as mulheres são homens, o homem surge da mulher, a mulher surge do homem. É de uma incontornabilidade assustadora, de onde resulta o amor, o sexo, a reunião, a intimidade, a solidão.
O filme termina como acaba - com dança, música (enfim, beleza, beleza), com Marco a chorar, alguns lugares à frente de Alícia, mãe de um filho sem pai (Benigno havia-se suicidado na prisão, condenado por violação à própria), tudo indicando que, para lá da rodagem, surgiu um novo romance. A tal continuação, o tal equilíbrio.
É um filme lindíssimo, sem dúvida. Provavelmente, a mais lírica das obras de Almodóvar e uma das que gosto mais. Visualmente é um portento e a mestria do cineasta é notável em cada cena.
ReplyDeleteCumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Parabéns, Diogo. Gosto muito de te ler e principalmente Almodovar :-)
ReplyDeleteROBERTO: Lírco e mestria, duas palavras chaves que aqui se aplicam na perfeição.
ReplyDeleteDORA: Um muito obrigado sincero :D Já tenho planeado o próximo realizador para o qual irei a seguir, embora esse, por ter uma obra reduzidíssima, vá merecer um formato ligeiramente diferente, como aconteceu com o Tarantino.
Sim, parabéns, vê-se bem que gostaste deste filme, gostei particularmente das tuas reflexões sobre a figura da mulher e da beleza das sequências do filme. Confesso que não captei a sua poesia (a deste filme) de imediato, mas que considero, indubitavelmente, um dos melhores de Almodóvar. Também ele está de parabéns.
ReplyDeleteQueria mandar-te um mail mas não encontro o endereço no perfil.
ReplyDeletehttp://splitscreen-blog.blogspot.com/2010/08/pedro-almodovar-completa-elenco-de-la.html
Somente Almodóvar pra criar um universo tão belo, lírico e instigante. Este filme é um primor, um dos melhores dele e é altamente poético pra mim, tão bom quanto Tudo sobre minha mãe.
ReplyDeleteParabéns pelo blog, Diogo.
Estou te linkando ao meu e te sigo,
abraço cinéfilo!
FLÁVIO: Muito obrigado e sim, gostei mesmo muito.
ReplyDeleteDORA: Tens razão, tenho de o colocar. Muito obrigado pelo link, vou já colocar a notícia.
CRISTIANO CONTREIRAS: Muito obrigado pelos elogios e pelas leituras, vou passar no teu logo que possa ;)
HABLE CON ELLA... Que dizer que já não foi dito pelos meus caros cinéfilos acima (é o que dá chegar atrasado à party :D)?
ReplyDeleteÉ uma obra de estrondosa qualidade, indiscutivelmente (vá, talvez não indiscutivelmente) o melhor dele (e premiado pela Academia, ainda por cima!) e o que melhor representa o que os seguidores de Almodovar mais gostam nos seus filmes.
Abraço,
Jorge Rodrigues
Hmm tinha ideia que já tinha comentado... HABLE CON ELLA é brilhante. Não admira que seja o preferido da maior parte dos fãs de Almodovar. É o que reúne as maiores qualidades do seu trabalho e é, como dizer, o mais "perfeito" dos seus filmes. Genial, envolvente, emocionante, fascinante.
ReplyDeleteBoa crítica :)
Abraço,
Jorge Rodrigues
http://dialpforpopcorn.blogspot.com
JORGE: De facto, já tinhas, ahah. De qualquer forma, fica reforçado. Obrigado, abraço.
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