Saturday, November 27, 2010
Dogtooth / Canino (2009)
"Quando o teu canino direito cair, podes sair de casa em segurança. Ou o esquerdo. Não faz diferença.". É em pleno açoite ao patinho mais feio da Europa dos 27, por parte dos mercados internacionais e do próprio FMI, que surge um dos melhores filmes não só do ano mas dos últimos anos.
Canino, do jovem realizador Yorgos Lanthimos, é um estudo filosófico, sociológico e antropológico, mangificamente bem conduzido, sobre a condição humana: a eterna dicotomia entre a prisão física, intelectual e sentimental e os puros instintos de as combater, a aflição da sobrevivência. Algo inevitável e inafastável - a propulsora curiosidade e sede de conhecimento do Homem, que o tem feito sair do escuro e das trevas, século após século. Um hino a algumas das reflexões mais profundas que a nossa espécie alguma vez fez, desde a originária, magoada e revoltada Alegoria da Caverna, de Platão, à bicuda e cáustica intervenção iluminista de Kant.
A câmara surge, desde início, tão autista como as personagens - os planos em que apenas as enquadramos da cintura para baixo, com as suas pernas e pés em foco, os enquadramentos das suas expressões de forma desajustada, irregular, cortada. A própria é, além disso, distante. São muito pouco utilizadas as grandes escalas e seguimos toda a acção como se uma barreira nos separasse, quem sabe a mesma barreira que circunscreve o espaço do filme.
O argumento é brilhante, com uma narrativa inteligente e sagaz, que na passividade inconsciente das personagens em combater a sua condição, cria uma progressiva evolução em direcção à questionabilidade, ao arriscar, ao espreitar, a um soltar de amarras e aflitivas correias. Várias pistas vão sendo deixadas ao longo dos noventa minutos sobre o estado momentâneo daquela família e dos cliques de nova fase que ameaçam surgir - como a associação que fazemos entre uma cena inicial, em que os filhos discutem sobre quem ficará com o avião se este cair, e uma cena mais tardia, em que a mãe deixa cair um avião de brincar, numa diferença que as "crianças" não sabem distinguir. Ou uma primeira fase, em que uma das filhas apenas espreita para dentro do quarto enquanto a mãe fala ao telefone, para uma segunda fase em que discute isso com a irmã, para uma terceira fase em que ela própria avança clandestina na direcção do misterioso objecto.
Uma jornada que segue a vida de três filhos já adultos que sofrem uma educação condicionada (a caverna), que lhes tolda o significado da vida: o significado do berço (dar à luz é um instrumento de manipulação e estratégia); o significado das palavras (enfraquece a essência linguística da comunicabilidade); o significado do corpo (do amor, do sexo, do gesto, do movimento); o significado da moral (o incesto, o paralelismo com os cães, em sons e acções); o significado dos sentimentos (da liberdade, da afecção).
Um minimalismo luminoso e esbranquiçado, silencioso e enclausurante, que nos transporta para um final cuja continuação não sabemos se queremos ver, já que daí resultará a restrição perpétua, castigo da revolução, ou, enfim, a luz e harmonia no alcance de novas realidades, como o admirável voo do avião que nunca cai.
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Sim, excelente filme que mais que isso é um incentivo à reflexão e à tentativa de compreensão da inexorabilidade do estado a que o ser humano se remete, somos mais que homens - somos animais também, e isto reflecte-se no instinto, na vontade que não tem corpo mas que está lá, e o filme é sublime ao mostrar isto. Do ponto de vista formal, as imagens minimalistas dançam em perfeita consonância com o conteúdo da narrativa, e acho interessante quando te referes à câmara enquanto "autista", porque o parece de facto, ainda que o espectador mais atento perceba as suas intenções e vontades. Boa crítica Diogo. ;)
ReplyDeleteJá o vi há uns bons 3 meses mas nunca mais saiu da minha cabeça... E já o recomendei a inúmeras pessoas... É um filme simplesmente fenomenal de uma originalidade e surrealidade invulgares... Cada vez que encontro uma nova crítica positiva do filme fico extremamente contente por haver mais uma pessoa em Portugal que teve o privilégio de apreciar esta deslumbrante obra...
ReplyDeleteE parabéns pela excelente crítica!!
Claramente um dos meus filmes preferidos do ano. Muito inteligente, uma versão contemporânea da Alegoria da Caverna e que remete para a sociedade actual também. Fantástico filme, um verdadeiro murro no estômago.
ReplyDeleteDINIS: Bem vindo ao A Gente Não Vê, "oficialmente". Na verdade, sobre dizeres que o espectador mais atento percebe a intenção, acho que tudo é muito claro, esses propósitos. Apenas nos são transmitidos envoltos numa capa de autismo, graças à forma como as coisas são filmadas. Brilhante, mesmo. Obrigado ;)
ReplyDeleteFILIPE: Sê, tu também, muito bem-vindo aqui ao sítio. Conheço várias pessoas que gostam muito deste filme, se isso ainda te deixa mais contente. Acredito que estará nos Óscares e, se assim for, terá bastante mais visibilidade. E muito obrigado ;)
TIAGO: Sem dúvida, murro no estômago. Que estudo !
Vou aventurar-me a vê-lo :-)
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