Friday, February 4, 2011

Black Swan / Cisne Negro (2010)


Apetece-me com infinita vontade começar este pequeno comentário a trautear a fabulosa peça musical de Tchaikovsky, aqui tão bem tratada por Clint Mansell, que tal como uma boa quantidade de planos, esquemas de montagem, imagens brutais e um argumento bem desenhado não me sai da cabeça. A deixar num canto aquele que saiu por cima em Veneza, ("Somewhere", de Sofia Coppola) Darren Aronofsky chega com um novo filme de personagem (no seguimento de "The Wrestler") que não só cumpre as elevadas expectativas como acaba por surpreender.

A narrativa, considero-a subvalorizada, pela total ausência que tem conhecido em tudo o que são prémios dedicados ao argumento. Os três argumentistas criaram aqui, a meu ver, um escrito bastante consistente, claro, muito bem estruturado, com uma excelente evolução de personagem, que polvilha por cerca de 90 páginas várias cenas que desenvolvem com grande mestria um tema que efectivamente consegue atingir o público, sem ser reconduzido a metafísica forçada.

É dentro desta personagem, Nina, que Portman tem a performance da sua vida (até agora), materializando e humanizando com forte emoção a progressão da loucura e esquizofrenia da bailarina que interpreta, viajando pela atmosfera dicotómica entre o branco da inocência e da pureza e o negro da corrupção da psique e do corpo (quem sabe da moral, com a introdução do leviano através do sexo), que resulta de um grande trabalho de lente e iluminação. Todo o filme se faz acompanhar por uma câmara à mão que ora nos introduz como mais um participante do espectáculo ou nos leva em constantes tracking shots instáveis e perturbados, tal como está o estado de espírito da Rainha dos Cisnes, a cada simples passo que dá.

É também aqui que Aronofsky volta a provar que é um dos maiores mestres do close-shot, do shot/reverse-shot (a cena de luta entre Portman e Portman, no final, por exemplo) e do plano pormenor da actualidade. A captação das expressões das personagens (nomeadamente de Nina e da mãe) e dos desenhos das acções das suas mãos (que por vezes ainda se faz extraordinariamente acompanhar pela mesma câmara tremida, como no hospital; que grande recurso!) criam uma neblina de tensão e suspense, num género hitchcockiano mais dinâmico, que se complementa com a utilização dos espelhos e dos reflexos como metáfora do fragmento de personalidade (belíssimas imagens, no camarim; no metro), com os back-shots que acompanham Nina num caminho que nunca conhece o que está na porta seguinte e com uma montagem ritmada, amedrontante (repentina) e perturbantemente contínua (a passagem de local para local com Portman sempre no mesmo e preciso enquadramento; fabuloso).

Gostei muito do recurso ao simbolismo místico e fantasioso da loucura, da dança, do tema: os espinhos; os olhos vermelhos; as pernas; a pele; as asas.

É de valor acrescentar que as cenas de dança estão muito bem filmadas, como o plano em que há uma panorâmica com gigante arrastamento, seguido de paragem, com repetição desta sequência por algumas vezes; como o balanço entre a altura normal e o contra-picado nos travellings que vai fazendo durante os ensaios, ora afastando-se, ora aproximando-se, criando uma mística aura daquela delicada mas poderosa actividade, daquela perfeição técnica que contrasta com a desarrumação psicológica e emocional que Nina vai desenvolvendo e terá de atingir para conseguir protagonizar o Cisne Negro.

E o final ? Esse, épico. Um dos melhores de sempre.

12 comments:

  1. Concordo contigo, um filme grandioso com um final que, embora me lembrando o do Requiem for a Dream, é mesmo isso que disseste, "épico". A câmara de Aronofsky impõe-se aqui como um verdadeiro marco, e nunca o vimos tão maduro. Pena que agora vá para o Wolverine, enfim...

    Ah, convido-te a ver as duas interessantíssimas featurettes do filme. Aqui: http://trailers.apple.com/trailers/fox_searchlight/blackswan/

    Abraços

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  2. Gostei bastante deste filme, especialmente dos últimos 30 minutos. A Portman está fantástica e fiquei bastante surpreendido com a actuação da Mila Kunis. Que a Portman é uma actriz de mão cheia já se sabia e este papel veio sublimar essa qualidade. Já a Kunis foi uma enorme surpresa: um lado negro perfeito para contrastar com a candura da protagonista.
    O Aronofsky está, mais uma vez, de parabéns. Confesso que The Wrestler não me encantou, ao contrário do Requiem for a Dream. O Black Swan, apesar de não superar este último (na minha modesta opinião), é um dos filmes do ano e uma das prestações da década.

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  3. Gostei bastante desta crítica!

    Concordo plenamente quando dizes que consideras a narrativa subvalorizada pela total ausência aos prémios dedicados a argumentos.

    Também apontei a minha adoração pelo recurso a símbolos que demonstram de facto a loucura de Nina e a metamorfose em Cisne Negro.

    E sim, o final está de facto épico, considero os últimos 30 minutos do filme uma autêntica montanha-russa de emoções, culminando num clímax delirante =) !

    No meu blog também fiz esta crítica, e realmente tocaste em aspectos que também abordei. O filme é quase perfeito para mim. Check it out (:

    www.depoisdocinema.blogspot.com

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  4. Fui ver o filme ontem, e fiquei mesmo chocada, devo dizer. É que nunca pensei que fosse gostar tanto. Black Swan está fenomenal. Estão verdadeiramente assombrosos, os vários elementos do filme que referiste. Aronosfsky é fantástico! E sinceramente penso que Portman deveria receber o Óscar, acho que nos proporciona uma interpretação muito boa mesmo. O filme está perfect ;

    Sarah
    http://depoisdocinema.blogspot.com

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  5. Excelente, excelente crítica.
    Adorei o pormenor, que referiste, da fragmentação da personalidade. Absolutamente genial.
    Concordo com toda a crítica. ;)

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  6. Ao ler este comentário compreendo o porquê de teres gostado deste filme como me identifico em bastante daquilo que disseste, porque sabes fundamentar. No entanto tens que ver que se metesses 75 % do teu comentário ao filme com asneiras e insultasses quem não gostou, aí sim teriamos uma opinião forte, sensata, inteligente, e onde o destaque seria balanceado entre um vocabulário rico ou em justificações perspicazes.

    E sim, o final, um dos melhores de sempre.

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  7. Brilhante crítica! Excellent :D

    E o final? Corroboro. Perfeito!

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  8. Antes de mais, muito obrigado a todos pelo grande feedback e pelos comentários ;)

    FLÁVIO: Aronofsky é alguém que realmente sabe fazer finais. Fá-lo em grande aqui, em The Wrestler, em Requiem for a Dream e em Pi. Enquanto que no último que referi assistimos a uma espécie de redenção da personagem, uma entrega a si mesmo e um despojo da sua ambição, nos outros três conhecemos o impetuoso triunfo da obsessão. E no entanto, encontro mais semelhanças com o final do The Wrestler - um último movimento da arte que enforma a alma das personagens principais, rendidos às suas teias, num final aberto em que a morte de cada um parece epifânica (aqui, mais em Black Swan).

    GEMA: Para mim, o melhor do ano ;)

    MARECOS: Antes de mais, bem-vindo ao "A Gente Não Vê" ;) Sem dúvida, quanto ao final do filme. Se todo ele vem sendo muito bem construído, aqueles 30 minutos finais são de uma pujança incrível. Aronofsky sabe fazer um crescendo. The Wrestler é, e agora até faço uma piada, o cisne negro de Aronofsky; talvez fique até melhor dizer "o patinho feio". Sinceramente, acho-o um excelente filme, um dos melhores filmes de personagem dos últimos tempos. Portman está magnífica e o Óscar já é dela. Kunis surpreendeu-me muito na primeira vez que vi o filme mas deixou-me verdadeiramente indiferente da segunda. À terceira é de vez, dizem.

    JOTA QUEIROZ: Li e também gostei muito da tua crítica ;)

    SARAH: Eu já ia com grandes expectativas (o que pode sempre ser perigoso), mas surpreendeu-me muito à mesma. Sobre a Portman, acho sinceramente que o Óscar já é dela ;)

    FILIPE HONÓRIO: Bem-vindo ao "A Gente Não Vê" ;) Muito obrigado pelas tuas elogiosas palavras, volta sempre.

    PEDRO: Enfim, o elitismo e o mar de arrogância que vamos conhecendo e discutimos e do qual, te garanto, escaparemos.

    NUNOB: Muito obrigado :D


    Abraços e beijinhos.

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  9. É por filmes como este que vale a pena ir ao cinema. Que experiência avassaladora. Magistral 5*

    Cumps.
    Roberto Simões
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  10. Transcendente, absolutamente transcendente! Beleza e horror confluem de forma magistral, pela visão ousada e genial de Aronofsky, pela interpretação visceral de Portman, pela tensa orquestração de Mansell! Sublime!

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  11. Ao tanto que já se falou do filme, eu já me perdi no meio dos elogios :)

    Eu gostei muito do filme (e gostei da tua crítica), como sabes e como dá para ver na minha crítica do blogue, mas ainda assim vejo nele falhas que me tapam um pouco a visão 'transcendente' que adorava ter também do filme.

    Não é o melhor do ano para mim, Portman não é a melhor do ano para mim - embora seja facilmente das melhores interpretações que já vi e certamente a melhor dela e não é o melhor filme de Aronofsky (REQUIEM nunca há-de ser repetido).

    É, ainda assim, um excelente filme, uma experiência fantástica numa sala de cinema, que nos possibilita um leque de emoções e impressões fascinantes que nos compele a conversar por horas a fio depois de o vermos.

    Cumprimentos!

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