Vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e do Grande Prémio do Júri de Cannes em 1994, Sol Enganador, de Nikita Mikhalov, que viu sair uma recente sequela que acabaria por se tornar o maior flop cinematográfico russo de sempre, é uma trama familiar, amorosa e político-ideológica absolutamente extraordinária.
Ao início são-nos despoletadas as considerações pela personagem principal, grande militar, um herói da Revolução de Outubro. A centelha política estava lançada.
Rapidamente o ambiente volta ao da sauna inicial, aos prados e às águas maravilhosas daquele outrora Império, a uma casa grande e cheia de pessoas, amizade e cumplicidade. Mas partíamos para noventa minutos de conflito familiar e amoroso, ou assim se adivinhava. Na verdade, nada se desequilibra na relação de Kotov com os seus tios, avós, primos, tudo é belo com a sua adorável filha, Nadya. A câmara aprofunda todas as divisões e localiza todos eles na sua diversidade de actuações. Uma distância q.b. . Até que chega Mitya, um personagem enigmático, incrivelmente profundo nas dúvidas que provoca quanto ao seu carácter, desde início. Os olhares e gestos, a pequena escapadela que troca com Marusia, mulher do General Kotov, tornam óbvia a passada história entre ambos; a traição iminente.
Com um argumento recheado de subtilezas nos diálogos, Mitya conta, à mesa, uma história a Nadya, uma lenda, um mito, que é obviamente a história entre ele, a sua amada e marido dela. Podíamos estar no registo telenovelesco, não fossem os contornos políticos começarem a surgir nas cenas seguintes, onde juntamos as peças da história verdadeira, onde enfrentamos a histeria de uma mulher envolvida num escândalo que só poderia ser mais do que pessoal. A trama dá o salto da traição carnal e emocional para a traição da pátria, no seu domínio prático (a espionagem) e teórico (a ideologia, que era a pátria soviética) e, nos últimos trinta minutos, eis que surge a história principal, belíssimamente cimentada pelo que se foi passando antes, numa transição de níveis de conflito incrivelmente engenhosa.
Kotov fora arquitecto com Estaline e arrastara Mitya das suas crenças Brancas, em 1923, altura em que ainda Marusia lhe pertencia, ingénuo defensor do czarismo (paralelo com a história contada a Nadya). Por uma mulher ou pela defesa de uma causa ? Passaram 13 anos, a idade aproximada da menina. Será ela filha de um amor ou de uma intransigência de ideais ? Ao aproximarmo-nos do climax, Kotov é acusado de espionagem para os alemães, num engenhoso plano por Mitya, cujo revestimento das motivações volta a balançar nos mesmos extremos: por uma mulher ou pela defesa de uma causa, a que ele agora já se converteu ?
Um dos planos finais é poderosíssimo e segue o plano rápido dedicado à fotografia daqueles que no início apelidei de arquitectos. Um balão com um gigante pano envergando o rosto de Estaline. Kotov tinha acabado de ser espancado, numa cena em que só vimos os agressores, em que só vimos o carro em plano geral, a afastar-se, como se nos houvéssemos esquecido dele. Até que, de repente, vemos a sua cara, sangrada e batida, num grande plano. Olha para as fuziladoras feições do chefe dos Vermelhos e compreende que também ele está no ciclo.
Que ciclo ? Bem sabemos como Estaline tinha o gosto em ir eliminando aqueles que lhe eram muito próximos. Mitya e Kotov, mais do que vítimas do amor por uma mulher, vítimas de um regime. Baseado numa história real, Marusia viria a morrer num Gulag, Mitya viria a suicidar-se (como acontece no filme e como engenhosamente o prevemos no início) e Nadya é professora de piano no Cazaquistão.
Que coincidência, acabei agora de ver o Urga :) este talvez o irei rever hoje à noite ou amanhã porque já o vi há tantos anos (ainda o tenho numa das vhs arrumadas nos caixotes cheias de pó eheh) que já nem me lembro bem. Mas lembro-me que é um grande filme. Vê o Urga se ainda não o viste, é um grande filme. O Mikhalkov é um dos grandes esquecidos injustamente.
ReplyDeleteMuito obrigado pela sugestão, Álvaro. Darei notícias sobre ela por aqui, assim que a vir ;)
ReplyDeleteNão conhecia. A tua crítica deixou-me curiosa!
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