Foi com alguma hesitação e com um envergonhado sorriso no rosto que Alexandra Corte-Real de Almeida, uma amiga, cinéfila como todos nós, acabou por aceitar o meu convite para fazer um texto sobre a sua perda de virgindade tarkovskiana, um momento marcante para qualquer amante de cinema.
O seu extâse, pelas suas palavras.
"Foram muitos os filmes que já vimos, nos cinemas e nas televisões, sobre a II Guerra Mundial, cada um tratando o tema sob uma perspectiva diferente, cada um com o seu próprio enredo interior e cada um, no geral, acentuando à sua maneira as consequências irreversíveis e avassaladoras que um conflito deste calibre tem. Pois bem, atrevo-me a dizer que o primeiro filme de Andrei Tarkovsky veio transcender qualquer visão sobre a guerra que eu já possa ter ponderado.
Em primeiro lugar é de realçar o facto de ser sob o olhar de uma criança que conhecemos o desastre que se fez sentir em terras russas.
Ivan, um menino de 12 anos que deambula entre a inocência do mundo onírico a que se agarra e a realidade tão mais vil e escura que tem em frente é órfão de pai e mãe e tentando fugir à Escola Militar ingressa nos Serviços Secretos Russos onde sente que poderá fazer algo pela guerra que encara. É a força vinda da ingenuidade de um rapazinho que teve de se adaptar e lutar contra (ou com) o duro contexto que lhe foi imposto que torna a película de Tarkovsky fascinante. Em paralelo ao percurso de Ivan assistimos ao comportamento dos adultos que o rodeiam e às relações que entre si estabelecem e que de certo modo contrastam com a simplicidade do protagonista, que apesar de condicionado pelo seu meio, não está ainda contaminado por esse.
Mas nunca é só no argumento e na premissa que reside a grandeza de um filme como este. É de louvar em Tarkovsky a sua capacidade de fazer a imagem e a forma como a capta falar por si só através das cores contrastantes e da iluminação sugestiva. Peguemos no exemplo dos sonhos que Ivan tem, nomeadamente com a mãe, todos carregados de uma simplicidade enternecedora que só sentimos graças aos tons cinzento claro e brilhante que acentuam a acção e fazem o espectador envolver-se mais facilmente e sentir-se, ele próprio, quase num sonho. Ou ainda, e como oposição, temos por exemplo as cenas em que vemos os vestígios da guerra e nas quais sentimos o pesar das cores escuras e das sombras que as cobrem. E, dando também a importância que o som tem ao deste filme, de realçar é a banda sonora escolhida a rigor, através da qual conseguimos quase de olhos fechados distinguir o mundo onírico do mundo real sem que isso nos seja mostrado como óbvio.
E é nessa completude de vertentes que A Infância de Ivan cresce a cada segundo até culminar num final que a meu ver não é se não perfeito muito embora triste e que sugere toda a inocência e simplicidade da infância que existe sempre em qualquer circunstância, por mais dura que seja, e que me deixou até nostálgica.
Porém, parece-me impossível escrever sobre Tarkovsky fazendo-lhe jus. Este filme deve, na realidade, ser tomado como o todo poético que é. Mais do que pensado e analisado tem de ser sentido para que o absorvamos na sua plenitude e com ele nos sintamos plenos também. E é nessa dimensão que se entende que a ligação que se estabelece com o cinema vale não só pelos elementos que compõem o filme mas essencialmente pela conexão de uns com os outros que fazem, neste caso, o todo maior e mais forte que a parte. E sem dúvida que, ver a Infância de Ivan, me veio provar isso mesmo instalando-se em cada bocado de mim e transformando-me com a sua própria transformação."
Linda.
ReplyDeleteParabéns à Alexandra pelo texto e por estar a descobrir Tarkovsky. É a melhor coisa que podes fazer, falado de cinema é claro :)
ReplyDeleteCada vez mais tenho vontade de ver Tarkovsky, contudo tenho tentado aguardar e esperar pelo tempo certo. Penso que será melhor adquirir mais bagagem cinematográfica, e só depois entrar neste mundo, pelo que me apercebo e um pouco pelo que leio. A seu tempo irei chegar lá.
ReplyDeleteabraço
Jorge,
ReplyDeleteFico contente por já reconheceres esse objectivo. Obviamente que compreendo a tua opção por querer crescer mais - Tarkovsky precisa de uma certa solenidade e reflexão para ser visto e apreciado. Assim, não tenhas pressa, mas força para quando te sentires preparado.
Abraço.
*quereres
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