A morte não existe, por si própria. A morte não
é, não o pode ser, por não passar de um nada que é a negação de um tudo. No máximo, a morte
está. Não no corpo inerte que olhamos com pesar, mas sim nas memórias, nas acções e nas feições dos que vivem. É por isso mesmo que, quer queiramos, quer não, a morte é uma coisa da vida. Mais, a morte é uma coisa dos vivos. A morte está onde brota o amor, onde discorre a saudade, onde aflige a necessidade, onde refulge o ódio ou onde palpita a vingança.

É assim que, em
Matador, Pedro Almodóvar nos conta uma estória incrivelmente familiar sobre fazer a morte, num retrato ritualístico. Uma familiaridade que não significa conhecimento, costume, que não significa que estejamos habituados à sua estória (algo impossível, nos complexos meandros dos argumentos do autor), mas que remete para uma caracterização quente, próxima e realista de várias personagens, das suas relações, vivências e locais, na Espanha dos anos 80. Na base de tudo isto, para além das magníficas e tão bem orquestradas cores e músicas, está uma câmara silenciosa e intimista, e o motivo mais cultural possível: a tourada. A emaranhada teia que vai ligar as personagens principais é feita por via das mais rotineiras emoções, como o orgulho, a admiração, a lealdade, a culpa ou a paixão, mas que se suplantam todas elas, como acabamos por perceber, em algo único: o desejo. Nesta película, o desejo é retratado de forma tão intensa como negra, não só fazendo referência à morte, como sendo parte da mesma, enquanto
está na mente e no corpo do Homem. No final, o sexo, o incontrolável impulso da carne, consagram esse mesmo estado de vida: a morte (excelente fotografia da cena dos amantes ensanguentados, que merecerá análise na rubrica "A Análise da Cena").
Carne Trémula, até agora o único filme do realizador espanhol cujo argumento é uma adaptação, também se desvia, tal como Matador, do tom paródico e cáustico da maior parte da sua filmografia, mas não chega a ser tão soturno como a obra acima analisada. Num jeito próximo do
thriller, é, no entanto, tão complexo como os restantes, sempre evidenciando o inafastável poder e influência de cada relação humana na vida de cada um (os primeiros minutos, com a estreia de Penélope com o director, são fenomenais, grande direcção e interpretação). São seis as personagens que se ligam entre si através da amizade, do amor, do ódio, da vingança ou, com mais força, do passado e da sorte, ou azar, dependendo do ponto de vista. Cada pequeno pormenor nos lembra que o homem é puro desejo, pura necessidade e por isso é-nos impossível definir posições quanto às personagens - queremos o bem e o mal a todos (o remorso e o ódio chegam a culminar numa ferverosa e longa noite de sexo, que no final se traduz na mais genuína sinceridade, quando a mulher conta ao marido que passou a noite inteira com o homem que o havia paralisado, supostamente, anos antes). Tudo parece acabar em adormecimento, sangue e distância. No entanto, à cena inicial de aflição, pressa e desenrasque, numa Espanha franquista, opõe-se a cena final, de felicidade, calma e redenção, numa Espanha democrática. Viver, morrer, é sempre ter esperança.

Termino o tema da morte com uma obra que considero subvalorizada na blogosfera,
Voltar, e cito o autor, " (...) é precisamente sobre a morte (...)". O registo é completamente diferente de Matador e Carne Trémula, e a evidência surge logo nos primeiros minutos de película, com uma extraordinária e animadíssima cena (actores, música e cores) num funeral, em pleno ritual de cuidar do cemitério e das campas - uma peculiar forma de lidar com a situação, que é resultado de fragmentos autobiográficos do autor, em relação às convicções religiosas da sua zona de La Mancha. A partir daqui viajamos por um extraordinário argumento (muito premiado), em que oscilamos entre a completa paródia e o drama lacrimejante, passando por pontos em que não há outra hipótese se não equilibramo-nos entre um e outro e resolver cair para o lado para o qual a nossa personalidade nos empurrar. Como pano de fundo, estão sempre os vivos, ainda que se fale de mortos, porque já o foram antes, porque o foram primeiro, de onde os sucessivos "vai e vem" entre o passado e o presente, através de uma mãe que devia estar morta, mas, da forma mais irónica e indiferente possível, não está e de uma estória familiar de paixão e fim da vida muito mal contadas. Um marido e pai de família, bêbedo, preguiçoso e predador sexual que acaba assassinado pela filha, que é encoberta pela mãe (magistral performance de Penélope, neste filme), uma amiga com cancro. É também ele um hino à força da mulher, como tantos outros que Almodóvar canta ao feminino.
Vejo aqui uma obra divertida, de certa profundidade (qual é a maneira certa de encarar a morte ? Veja-se a ironia de ter um corpo numa arca frigorífica e dar festas no mesmo local) e extremamente empolgante e envolvente. Não é o melhor de Almodóvar, mas não consegue ser menos do que bastante bom.