Thursday, April 7, 2011

There Will Be Blood / Haverá Sangue (2007)


Há filmes que, de cada vez que os vemos, nos extasiam ainda mais do que da última vez, numa cada vez mais profunda percepção de toda a sua conjugação de imagens, sons e narrativa. Ontem à noite cheguei da Cinemateca, depois de mais uma visualização de Haverá Sangue, a segunda em ecrã de cinema, e, desde então, não consigo pensar noutra coisa. Haverá obra mais magnífica que esta ? Muito poucas, as equiparáveis.

O primeiro acto (acredito que é constituído por quatro) é o melhor setup de sempre. Da escuridão mineira e carbónica em que vemos Daniel pela primeira vez (que vai contrastar com a incendiária luz do sol), a batalhar com uma simples picareta contra a rocha inamovível, passamos por uma panorâmica vertical que liga, através do mais genuíno poder da imagem em movimento, com suspense e uma fotografia indescritível, a sua grave lesão à solução que tem para a ultrapassar - atravessar o deserto e as montanhas.

Em todos os domínios, em poucos minutos, sem qualquer diálogo, estão introduzidas todas as filosofias que vão enformar o filme. Tecnicamente, é a câmara fluída, participante, maquiavelicamente reveladora, misteriosa e tensa; é a cor, nos contrastes e no absoluto, com os tons maioritariamente quentes e desérticos e com as sombras e um negrume de arrepiar a alma (é em articulação com uma composição perfeita que vai deixar que haja planos que são autênticos quadros); é o som, milimétrico e rigoroso, que potencia em sinestesia a textura da imagem; é a música, gélida, cortante, que vai ser outra das faces do conflito e da personagem principal. Narrativamente, é na subtileza dos elementos, das acções, da composição e das expressões que se baseia o argumento (não obstante os diálogos inigualáveis). Tematicamente, é na clareza com que nos é apresentada aquela que talvez seja a mais ambiciosa e mais bem sucedida personagem que o cinema já conheceu.

Seguimos por um clássico encadeado entre a assinatura, por si só esmagadora, de Daniel Plainview, e as construções que já lhe pertencem (as suas mãos sujas de carvão; os esboços das máquinas). Rapidamente, descobre petróleo e é num plano magnífico que o seu louco regozijo nos é dado a conhecer - a palma da mão mergulhada no líquido e erguida para os céus. Está introduzida mais uma peça do conflito: a ambição de um homem do petróleo. O engendrar das máquinas, nos rigorosos grandes planos, com o som a transportar-nos directamente para o local, criam uma atmosfera de mecanização quase assustadora, até que sucumbe e resulta no acidente de um trabalhador (num plano que capta na perfeição a violência do embate, muito semelhante aquele em que Daniel cai, logo no início). Aliás, é precisamente aqui, numa mera fracção de segundo, que o sangue do homem se espalha pelo ar, como pó. A seguir, vemos mais um plano avassalador, um grande plano de Plainview, coberto de petróleo e sangue escuro. Nestes dois, eis que, pela primeira vez, o sangue se mescla com o combustível, aqui retratado com uma fidelidade impressionante, com uma textura mesmo viscosa. Se o título parecia adquirir, já aqui, um significado de grande abrangência, ainda mais quando o filho do homem é adoptado por Daniel (bebé que já tinha sido baptizado com uma marca do líquido), que o passará a acompanhar para sempre - o sangue, agora, representa também a família e está, finalmente, introduzido o drama da obra: um ganancioso que balança entre a sua ambição desmesurada pelo sucesso e dinheiro do petróleo e entre certos valores familiares.

A partir daqui, o negócio do nosso personagem floresce e leva-o de discurso em discurso, de cidade em cidade, de terrenos em terrenos, de população em população, Califórnia fora, procurando expandir o seu império. Nove anos passam, numa elipse muito bem conseguida, e Daniel compra uns terrenos em Little Boston, o espaço de todo o resto da acção. Também aqui faz o seu magnífico discurso, em que o subtexto nos revela tanto, tanto: por um lado, a eloquência com que fala do seu trabalho (oil man); por outro, o orgulho com que fala de seu filho e da importância que confere à família (family man), prometendo a construção de toda uma série de infra-estruturas, para aumentar a qualidade de vida da população. Uma vez mais, o conflito entre petróleo e família. Porém, note-se a subtileza dos planos aqui utilizados, a salientar o individualismo de um homem sem limites: começamos num plano aproximado de Daniel; passamos para um plano que nos revela os presentes; terminamos num plano afastado, em que vemos Daniel, o filho (H.W.) e algumas pessoas, seguimos em steadycam até vermos apenas os dois, com incidência no segundo, mas rapidamente reenquadramos para o magnata, voltando a aproximar-nos, terminando como no início. O seu olhar e a sua voz são arrepiantes.

Já a vila trabalha com gosto e vigor e o poço prepara-se para ser inaugurado. Eli, um pastor da Igreja da Terceira Revelação, um homem manipulador, sedento de poder e atenções, vê as suas intenções imediatamente identificadas por Daniel, ao pedir-lhe para que este lhe conceda um papel de destaque na tal inauguração (a parte final da missa, e toda a conversa final, acontece num só plano-sequência, de intensidade dramática magistral, em que se sente realmente um confronto de titãs). Daniel finge aceder, despedindo-se com "That was a goddam hell of a show!", referindo-se à sua "expulsão" de um demónio. O que vai terminar o primeiro acto, é a inauguração do poço pelo seu filho e pela sua pequena amiga, Maya, com um discurso altamente provocador e confiante, de Daniel, em relação a Eli - mais uma escalada no conflito, ao surgir a oposição de um homem que se atravessa na sua esfera de domínio social e económico, graças ao petróleo, sempre balançado pelo espírito familiar (quem ele escolhe para a inauguração).


Segue o segundo acto num crescendo de tensão que vai culminar no ponto de instigação da instabilidade deste homem. Caríssimos, esta sequência deixa-me de tal forma sem palavras que apenas conseguirei apontar algumas referências. A alternância entre a claridade do bonito dia e o abafado e a escuridão do fumo negro, o jorro do petróleo, imponente e incontrolável, as chamas que o envolvem e que nos deixam a contemplar o fogo, tal e qual como faz Plainview, pela sua beleza e não pela destruição que cria (ou pormenores como o plano desordenado e inclinado, quando Daniel sobe para ir buscar o filho). É aqui que H.W. fica surdo (e conectamo-nos com ele por várias vezes, ao som de Arvo Part) e é a partir daqui que o seu pai começa a perder o controlo. Tudo é criado criado de forma incrivelmente subtil e terminamos com três beats magistralmente elucidativos: 1) o fogo parece ter tido mais para aproveitar do que para lamentar, no que toca à exploração de recursos; 2) o enternecedor plano em que pai e filho dormem, abraçados, imundos de negrume (repare-se, com estes dois pontos, de novo e como sempre, petróleo e família); e 3) um insert de um grande plano de Eli, com as chamas a reflectirem-lhe no rosto, garantindo que não só a família (surdez) mas também os negócios terão uma fase mais dura.

Entramos no pedaço mais intenso do filme, a meu ver - o terceiro acto. Enquanto se debate com a negação do problema de H.W., Daniel é abordado pelos imperialistas da Standard Oil, que se propõe a comprar-lhe todas as propriedades por uma soma avultada, que acabam por cometer o erro de lhe sugerir a doença do filho, despoletando-lhe uma imensa raiva (novamente, petróleo e família)."You don't tell me how to run my family" está, assim, para a tensão que se sente entre ele e o que resolverá para o seu pequeno e, em claro subtexto, para a sua própria empresa - que não desafiem nem a sua família nem a sua ambição e prospecção de sucesso. Esta atitude estende-se a uma humilhação a que submete Eli, batendo-o e enterrando-o numa poça, uma reacção contra a impossibilidade de ninguém, nem Deus (em quem não acredita) poder curar o filho, e a afronta que o pastor representa, sobre o domínio de todas aquelas pessoas.

E eis que chega uma nova personagem, que vem dar um novo rumo à jornada emocional que Daniel vinha percorrendo - é Henry, seu (suposto) irmão. Aqui, há uma nova confrontação com os homens da Standard, num café, com um campo/contra-campo entre Daniel e os mesmos, quase westerniano, em que estamos prontos a vê-lo disparar a qualquer momento (a alternância entre a sua cara, os homens despreocupados, os copos na mesa) - anuncia que, ele próprio, construirá o seu oleoduto, sublinhando a rejeição da proposta de compra. Se já tínhamos um novo nível na sua esfera familiar, temos também outro nível na sua esfera profissional. Sendo algo que já estava eminente, Planiview envia o seu filho para longe, depois de este ter provocado um incêndio, aparentemente inexplicável, na sua própria casa, onde dormiam os dois, mais o aparecido tio - é o início de um desequilíbrio quanto à família. Pouco depois, apercebe-se de que será difícil adquirir os terrenos para construir o oleoduto (apesar da sua grande determinação, mostrada na brilhante sequência em que prega os ferros por todo o terreno, terminando num incrível contra-picado em cima de uma mesa no "escritório") - desequilíbrio quanto ao negócio.

Mas é depois de um incrível grande plano de Daniel, num grande trabalho de montagem e gestão da duração de planos, aquando de uma conversa com Henry, que desperta a dúvida sobre se será que estamos perante um verdadeiro irmão. O homem do petróleo encontra um diário do afinal impostor, meio queimado, que o seu filho havia descoberto e havia tentado queimar, para que o pai nunca descobrisse e pudesse viver com essa pequena alegria. Acaba por matar o viajante e enterra-o no próprio líquido viscoso, enterrando completamente o seu passado no seu presente sucesso - há até aqui um paralelismo coreográfico (Daniel a escavar com uma picareta) e musical com o início do filme, que me parece significar precisamente que, no lugar a que chegou, há apenas lugar aos dois elementos que têm vindo a equilibrar toda a narrativa (sendo que Henry se tentou aproveitar do negócio e a mentir sobre a família). Pela manhã, é descoberto por Barny, aquele a quem tem de comprar os terrenos e cuja única exigência, em concertação com Eli, é que Daniel se sucumba ao baptismo de Deus e à redenção dos seus pecados, na Igreja da Terceira Revelação, uma humilhação máxima para si (que pecados, pergunta Daniel, ao que o velho lhe estende a pistola com que ele matou o irmão, em mais um belo momento cinematográfico).

O turning point do terceiro acto surge precisamente com a redenção de Daniel, perante Eli e perante a Igreja. É uma das cenas mais perfeitas que já vi, conseguindo um balanço perfeito entre a humilhação que Plainview sente, em virtude da vingança de Eli, e a sua irascível inteligência ao saber que aquele acto lhe garantirá os terrenos para o oleoduto e entre os seus motivos - o profundo arrependimento por ter mandado o filho embora ("I abandoned my child!") e o utilitarismo da confissão ("There's an oil pipe!"). Plainview é esse mesmo homem que temos visto que é, grotescamente ambicioso mas sofredor pelo seu ente querido. Os valores narrativos "petróleo" e "família" voltam a estar positivos.
Uma pequena resolução ainda discorre brilhantemente - daqui passamos imediatamente para um travelling em que percorremos a construção do gigante tubo, em plano aproximado, e terminamos num plano geral do reencontro de Daniel e H.W., altura em que ouvimos as suas vozes, que, em contraste com a distância que a imagem transmite, nos dá a conhecer um buraco na relação, que terá um nível que nunca será fechado (uma vez mais, Daniel sempre dupla preocupação).

O último acto é um eloquente epílogo. Viajamos 20 anos para o futuro, altura em que Plainview vive numa gigante mansão, negra e assustadora, alcoólico mas riquíssimo, materialmente glorioso mas emocionalmente desequilibrado. O seu filho cresceu e casou com a sua amiga de infância, Mary, desde sempre a protegida do pai. A discussão que têm é intensa e Daniel Day Lewis entra no final do filme sem perder um pingo da sua interpretação global magistral. Não só os planos são magníficos como toda a cena é narrativamente bem construída, com diálogos incrivelmente profundos e reveladores de toda a relação que existe entre aqueles dois homens, sempre em subtexto. Desde a necessidade de existir um tradutor, pela barreira de entendimento física e concreta que já existe (com dimensão emocional), aos ataques do pai para que ele diga umas palavras, acabando por conseguir (a transposição). O melhor chega quando Plainview brame, irritado e desolado por fora, mas orgulhoso por dentro, que H.W. não é seu filho, pois está a deixa-lo para criar a sua própria companhia - é precisamente o contrário que está a sentir dentro de si: mais ninguém poderia ser mais seu filho do que alguém que ousasse competir consigo de tal forma. E, aqui, a necessidade de fazer um foreshadowing para o diálogo com o irmão, "I have the competition in me.", associando-o com o que diz ao filho, "You have nothing of me.".

A última cena é avassaladora. Eli visita Daniel e é espancado até à morte, num quase simbólico gesto de vingança por toda a oposição que representou para si, a todos os níveis, a determinada altura da sua jornada na terra - a ele, como a mais ninguém senão à sua família, admite ele competição, concorrência, negação, rejeição, defrontação. No fim da vida, Daniel Plainview, um capitalista monstruosamente ganancioso e ambicioso, consegue tudo o que quer, ao nível do negócio do petróleo, sem nunca abandonar os seus mais inconscientes valores familiares. Na sua completa destruição, é o homem com mais sucesso de sempre.

Peço imensa desculpa pelo maior testamento que alguma vez fiz neste blog mas a verdade é que escrevi isto quase como terapia - como disse, tenho estado extasiado com isto. Enfim, resta-me dizer que só conheço um cineasta que conseguia aglutinar a narrativa (plot, diálogos e personagens), o som, a música e a imagem de forma tão perfeita como Paul Thomas Anderson: Stanley Kubrick. E, respondendo à questão que por aí se discute, estabelecidas as necessárias divergências temáticas e de época, e apesar de ser grande, grande fã de muitos outros, sim, P.T.A. será o novo Kubrick.

6 comments:

  1. Será P.T.A o novo Kubrick?
    Sei que adoro os dois. There Will be blood é um filme do outro mundo.

    Abraço
    Frank and Hall's Stuff

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  2. Este é um dos melhores filmes deste século, sem qualquer sombra de dúvida. Não só a nível técnico, como muito bem explicas neste post, mas sobretudo pela personagem do Daniel Day-Lewis, que é simplesmente arrepiante. E é uma interpretação genial.
    Mas Kubrick só houve um e é incomparável, assim como muitos outros cineastas, com as suas próprias marcas. PTA é definitivamente um nome à parte no actual panorama, pena que seja tão raro.

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  3. PROJECCIONISTA,

    Quando falo em Kubrick, estou a pôr de lado uma comparação temática (guerra, sexo, violência vs amor, redenção, ganância - isto, simplificando tudo), de época (Kubrick era um provocador, um intervencionista; falamos da Guerra Fria, da Guerra do Vietname, entre outros - P.T.A. não chega a estes domínios) e até de estilo (não obstante as influências que se possam traçar, como as semelhanças do bizarro em Punch-Drunk e em Shining, são estilos diferentes). Refiro-me ao facto de de, como dizes, ser um nome à parte, e à parte de todos os outros, mesmo daqueles que mais idolatro e que considero grandes senhores do cinema.

    Abraço e obrigado a todos ;)

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  4. Adorei o blog. É mais disto que precisamos neste país.
    Se quiserem passar pelo meu, estejam à vontade. Estou a oferecer dvd's originais e selados.

    www.cinemofilia.blogspot.pt

    Continuem o bom trablho.

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  5. Muito obrigado, cara Juliana. Certamente que passarei no blog.

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