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Friday, August 20, 2010

Almodóvar, a obsessão e a necessidade do auto-conhecimento: Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988) e La Mala Educatión (2004)


A obsessão é um dos inafastáveis veículos de condução da essência humana, ao ser todo um conjunto de atitudes potenciais, portanto, que exponenciam outras, mais simples. Trata-se de um espelho dos pontos de vista da emoção e do intelecto humano - de forma mais racional e prospectiva, e aí chame-se-lhe ambição, ou mais descontrolada e alheia, e aí chame-se loucura.

Foi com um pequeno retrato de um conjunto de obsessões que Pedro Almodóvar deu o grando salto para a ribalta, nomeadamente para solo norte-americano, em Mulheres à beira de um ataque de nervos. Longe das suas lutas psicológicas, filosóficas e culturais pelo liberalismo social e sem intenções discurssivas mais profundas, sobre o Homem, que normalmente aborda, conta-nos a estória de um dia na vida de três mulheres que se conhecem e se interligam através de um conjunto de teias ditadas pelos seus homens ou pelo acaso, acabando cada um por levar ao outro. São vários os episódios caricatos e hilariantes que as personagens protagonizam, a um ritmo precisamente nervosinho (close-shot nos sapatos irrequietos), consciente mas à beira do ligeiro histerismo, com diálogos secos, rápidos e cómicos e com uma atmosfera neutra e incrivelmente colorida - um melodrama paródico, um filme engraçadíssimo, um óptimo remédio para a má disposição.


Em Má Educação, identifico uma visão e uma abordagem completamente diferente ao tema, às personagens, à atmosfera, à vida - uma obsessão por respostas, por explicações, ainda que forjadas. O linear desmantela-se em o desestruturado e indeciso (sucessivas analepses), conferindo ao argumento a primeira ponta de dinâmica e criatividade e embrenhando o espectador na efémera e recorrente luz com que a nossa memória nos confere acesso ao passado. A perspectiva singular e directa desmonta-se num aglomerar de influências, desenvolvendo-se aqui toda a genialidade narrativa da película, pois são várias as estórias que assistimos, nós e as personagens, de forma autónoma e separada, como inúmeras caixas sucessivamente dentro umas das outras, abrindo-se à nossa vontade, fazendo-nos duvidar da sua continuidade e questionar sobre o seu papel.
É assim a única forma de compreender o caminho por onde viemos, as etapas que ultrapassamos, os obstáculos que enfrentámos, aquilo que nos deram, aquilo que nos tiraram, aquilo que perdemos, conquistámos ou roubámos. É assim a tentativa que é feita por Almodóvar para se fique, nós a conhecer e as personagens a recordar, aquilo que foi um caminho tumultuoso pela infância, pela adolescência, pela árvore em que se tornou uma má educação, pelo controverso de que se parte e que daí surge (o abuso sexual, a transsexualidade, as drogas), pelas estranhas conexões que podem surgir entre o Homem, que caricaturam o próprio acaso e fazem dele estúpido (do acaso). Uma busca por uma identidade própria (com literais trocas de identidade, ao longo do filme), uma necessidade de auto-conhecimento.
Esteticamente irrepreensível, com uma fotografia serena e emotiva (as cenas da ingenuidade infantil, das brincadeiras, em câmara lenta, acompanhadas pelo canto agudo da criança; a cena escura e azul, assustadora, na casa de banho, com um close-shot nos pés das crianças, escondidas atrás da porta, aumentando a tensão que culmina na imponente imagem do padre, quando a consegue abrir).
Um dos meus favoritos.

Wednesday, August 18, 2010

Almodóvar e a sátira religiosa: Entre Tinieblas (1983)

É com um dos tematicamente mais controversos filmes da sua carreira e com uma certa dose de non-sense que Almodóvar faz uma arrojada e seca crítica à religião, um risco que custou a aceitação do filme no Festival de Cannes. Negros Hábitos retrata uma série de episódios na vida de uma peculiar congregação de freiras, que vivem num mosteiro quase de recurso, que se vestem de preto e que se guiam na vida pela direcção e em nome do pecado, ou não tivesse Jesus Cristo sido morto para nos redimir dos mesmos - na verdade, o nome das suas vestes, que empresta palavras ao título, é religiosamente transposto para acções, diálogos, filosofias e atitudes.
Em contraste com a rigorosa relação entre o preto e o branco, aqui irmãos da ordem, do compromisso e da humildade (uma vida de despojos), reflectem, cantam e exaltam-se sempre toda uma panóplia das mais emocionantes e despertadoras cores em volta das personagens, estabelecendo o feixe da direcção irónica que a película leva, bastião da "balda", do desleixo e do divertimento quase inconsequente - e se leva o moderador de adjectivo é porque a hipocrisia da madre superiora assim o exige. A droga, a criação de um animal selvagem, a protecção de uma prostituta criminosa intimamente ligada às próprias freiras, a extorsão de dinheiro, o passado marcado pelo assassínio ou o presente pautado pela homossexualidade, e a redacção de contos eróticos são o verdadeiro e leviano dia a dia destas mulheres de Deus, que não deixam de se prezar a um ridículo e falhado esforço de cobertura, de onde a mentira, a forja, a corrupção e o interesse pessoal emergem como triunfo e pseudo-exemplo. Não é dos meus favoritos, mas, ainda assim, consegui aprecia-lo.

Tuesday, August 17, 2010

Almodóvar e o amor e a paixão na morte: Matador (1986), Carne Trémula (1997) e Volver (2006)

A morte não existe, por si própria. A morte não é, não o pode ser, por não passar de um nada que é a negação de um tudo. No máximo, a morte está. Não no corpo inerte que olhamos com pesar, mas sim nas memórias, nas acções e nas feições dos que vivem. É por isso mesmo que, quer queiramos, quer não, a morte é uma coisa da vida. Mais, a morte é uma coisa dos vivos. A morte está onde brota o amor, onde discorre a saudade, onde aflige a necessidade, onde refulge o ódio ou onde palpita a vingança.


É assim que, em Matador, Pedro Almodóvar nos conta uma estória incrivelmente familiar sobre fazer a morte, num retrato ritualístico. Uma familiaridade que não significa conhecimento, costume, que não significa que estejamos habituados à sua estória (algo impossível, nos complexos meandros dos argumentos do autor), mas que remete para uma caracterização quente, próxima e realista de várias personagens, das suas relações, vivências e locais, na Espanha dos anos 80. Na base de tudo isto, para além das magníficas e tão bem orquestradas cores e músicas, está uma câmara silenciosa e intimista, e o motivo mais cultural possível: a tourada. A emaranhada teia que vai ligar as personagens principais é feita por via das mais rotineiras emoções, como o orgulho, a admiração, a lealdade, a culpa ou a paixão, mas que se suplantam todas elas, como acabamos por perceber, em algo único: o desejo. Nesta película, o desejo é retratado de forma tão intensa como negra, não só fazendo referência à morte, como sendo parte da mesma, enquanto está na mente e no corpo do Homem. No final, o sexo, o incontrolável impulso da carne, consagram esse mesmo estado de vida: a morte (excelente fotografia da cena dos amantes ensanguentados, que merecerá análise na rubrica "A Análise da Cena").



Carne Trémula, até agora o único filme do realizador espanhol cujo argumento é uma adaptação, também se desvia, tal como Matador, do tom paródico e cáustico da maior parte da sua filmografia, mas não chega a ser tão soturno como a obra acima analisada. Num jeito próximo do thriller, é, no entanto, tão complexo como os restantes, sempre evidenciando o inafastável poder e influência de cada relação humana na vida de cada um (os primeiros minutos, com a estreia de Penélope com o director, são fenomenais, grande direcção e interpretação). São seis as personagens que se ligam entre si através da amizade, do amor, do ódio, da vingança ou, com mais força, do passado e da sorte, ou azar, dependendo do ponto de vista. Cada pequeno pormenor nos lembra que o homem é puro desejo, pura necessidade e por isso é-nos impossível definir posições quanto às personagens - queremos o bem e o mal a todos (o remorso e o ódio chegam a culminar numa ferverosa e longa noite de sexo, que no final se traduz na mais genuína sinceridade, quando a mulher conta ao marido que passou a noite inteira com o homem que o havia paralisado, supostamente, anos antes). Tudo parece acabar em adormecimento, sangue e distância. No entanto, à cena inicial de aflição, pressa e desenrasque, numa Espanha franquista, opõe-se a cena final, de felicidade, calma e redenção, numa Espanha democrática. Viver, morrer, é sempre ter esperança.



Termino o tema da morte com uma obra que considero subvalorizada na blogosfera, Voltar, e cito o autor, " (...) é precisamente sobre a morte (...)". O registo é completamente diferente de Matador e Carne Trémula, e a evidência surge logo nos primeiros minutos de película, com uma extraordinária e animadíssima cena (actores, música e cores) num funeral, em pleno ritual de cuidar do cemitério e das campas - uma peculiar forma de lidar com a situação, que é resultado de fragmentos autobiográficos do autor, em relação às convicções religiosas da sua zona de La Mancha. A partir daqui viajamos por um extraordinário argumento (muito premiado), em que oscilamos entre a completa paródia e o drama lacrimejante, passando por pontos em que não há outra hipótese se não equilibramo-nos entre um e outro e resolver cair para o lado para o qual a nossa personalidade nos empurrar. Como pano de fundo, estão sempre os vivos, ainda que se fale de mortos, porque já o foram antes, porque o foram primeiro, de onde os sucessivos "vai e vem" entre o passado e o presente, através de uma mãe que devia estar morta, mas, da forma mais irónica e indiferente possível, não está e de uma estória familiar de paixão e fim da vida muito mal contadas. Um marido e pai de família, bêbedo, preguiçoso e predador sexual que acaba assassinado pela filha, que é encoberta pela mãe (magistral performance de Penélope, neste filme), uma amiga com cancro. É também ele um hino à força da mulher, como tantos outros que Almodóvar canta ao feminino.
Vejo aqui uma obra divertida, de certa profundidade (qual é a maneira certa de encarar a morte ? Veja-se a ironia de ter um corpo numa arca frigorífica e dar festas no mesmo local) e extremamente empolgante e envolvente. Não é o melhor de Almodóvar, mas não consegue ser menos do que bastante bom.

Tuesday, June 1, 2010

Lars von Trier - Trilogia "Europa"

A trilogia "Europa" é o conjunto das três primeiras longas-metragens do realizador dinamarquês, que não se identificam pela estrutura narrativa, mas sim pela técnica (a introdução da rear projection) pelo estilo, filmagem e efeitos (Europa seria o percursor de The Schindler's List) e pelo sempre presente herói que acaba por contribuir para o triunfo da desgraça. Em todos os três filmes, muito especialmente em Europa e em The Element of Crime, somos envolvidos numa profunda reflexão sobre as motivações, as ânsias, as dúvidas, sobre todo o psicológico do nosso personagem principal de uma forma brilhante, no limite do mágico.



3. Epidemic / Epidemia (1987)

Protagonizado por von Trier e por Niel Vorsel, este filme conta a estória de dois argumentistas que escrevem um argumento sobre uma terrível epidemia que se abate sobre a Europa e se propaga a uma velocidade assustadora, sem qualquer antídoto em perspectiva. Na sua imagem a preto e branco, a claridade como maior fatia da cinematografia e uns tons de verde azulado deixam transparecer uma atmosfera realmente doente. Paralelamente ao trabalho dos argumentistas, assistimos ao filme que estes vão escrevendo: um médico idealista rompe com as correias da racionalidade que os seus colegas sobreviventes tentam impor-lhe, para se lançar numa utópica corrida pelo salvamento de inocentes.
O filme, em si, não nos diz muito e diz-nos muita coisa. É considerado um dos maiores auto-retratos do realizador, sem que se compreendam muitas das suas incursões. Consegui achar alguns pedaços de humor, em alguns diálogos entre as duas personagens principais e senti que a pressão que os dois sentem ao ter de escrever um argumento com pouco tempo contribui, juntamente com aquele sentimento de não saber bem o que quer dizer o filme, para reconhecer validade a uma declaração de Lars von Trier: "um filme deve ser uma pedra no sapato.". Na verdade, fiquei mesmo com um nó na garganta, depois de ver este.
O nosso herói acaba por contribuir para o mal que quer eliminar, já que o médico da estória dentro da estória acaba por descobrir que é ele mesmo que propaga o vírus. Não chegasse isso, no final da estória fora da estória, assistimos a uma aterradora visualização da forma como uma epidemia surge na vida real, como se fossem os próprios cineastas os criadores de todo o mal.
Perturbador.



2. The Element of Crime / O Elemento do Crime (1984)
Uma obra extraordinária sobre a eterna dicotomia entre a realidade e a fantasia, edificada sobre a loucura de um homem e sobre o rasto de morte que persegue e que acaba por o consumir. Ficsher (Michael Elphick) está no Cairo a contar, sob o efeito da hipnose, a sua última experiência na Europa, para onde foi chamado para resolver um crime hediondo. A pausada e serena voz do narrador e de Fisher, quando começa a contar a sua história, e as indicações do hipnotisador, deixam-nos logo em modo de partida para uma apreciação do filme em estado intencionalmente dormente. A cor do filme, sépia com intensidade no amarelo, o constante recurso à imagem e ao embalador som da água a escorrer ou a cair, envolvem o espectador na profunda, perturbada, confusa e melancólica consciência do personagem principal, passando por cenários surreais e pouco aprazíveis, num distópico continente fustigado pela Guerra. Nunca sabemos bem o que faz parte da realidade e o que faz parte da sua imaginação, moldada pela traumática experiência que viveu (por exemplo, a associação da imagem do burro à fantasia e a sua aparição ao longo do filme).
Fisher conta que voltou à Europa para resolver um crime que, vem a perceber, em muito se assemelhava aos "crimes da lotaria", uma série de assassinatos perpetrados havia alguns anos. O método que segue é o de Osbourne (Esbound Knight), seu antigo mestre, o grandioso teórico da Criminologia que havia editado o livro "O Elemento do Crime", sobre como a entrada na pele do criminoso é a chave perfeita para a resolução de um caso. Osbourne está velho e louco. Afirma que Harry Grey é o autor dos massacres, com base num velho relatório elaborado pelo mesmo, três anos antes do primeiro crime. Porém, Grey terá morrido antes desse primeiro crime, num acidente em que Osbourne estava presente. Como é possível ? Não será isto fruto de uma ameaça de Harry ? O que sabemos é que a alma do antigo professor não mais aguenta o facto de achar que apenas contribui para o desabrochar da criminalidade, acabando por se suicidar.
Fisher decide perseguir Harry Grey sendo Harry Grey. Procura os mesmos lugares, dorme nas mesmas camas. A certa altura, encontra Kim (Me Me Lai), uma prostituta, com quem tem um sexo ao mesmo tempo frio e intenso, em circunstâncias que novamente nos fazem duvidar da veracidade da estória do polícia, e que contribuem para associarmos a personagem a uma alma vazia. Kim ajuda-o a entrar no papel do assassino, dando-lhe uns comprimidos para reproduzir as suas enxaquecas, atirando Fisher para um novo nível de sofrimento, desta vez físico. Por diversas vezes, lembra que "Harry Grey passou metade da noite com a Kim", claramente referindo-se à nossa personagem. Será assim mesmo ? Julgo que sim, acabando por ser um indício do fatal fim que se aproxima: Fisher descobre que Kim dormiu mesmo com Harry Grey; aliás, tem um filho dele. "Harry Grey passou metade da noite com a Kim.". A esta altura Fisher já é tão Harry Grey como o próprio. Ao vestir-se do criminoso, não conseguiu nada se não sê-lo - a prova disso é a relação com a prostituta. Como um louco, assoma à janela e dispara vários tiros para o além, exactamente como fez Osbourne da última vez que o vemos com vida, já em delírio, num cume do êxtase de histeria.
O final parece quase inevitável. Fisher acompanha uma rapariga pequenina a um local onde esta deve encontrar-se com o criminoso, sozinha, para que ele lhe compre muitas "raspadinhas". As centenas de garrafas no chão do local de encontro, perfeitamente dispostas, evidenciam, uma vez mais, o carácter surreal da estória. Após alguns momentos de suspense, sons. Um amuleto, em forma de cabeça de burro, o símbolo do assassino, cai do bolso do nosso herói, que apenas o guardava como prova. A rapariga, apavorada, julga estar perante a encarnação da sua sina e Fisher, consumido pela cegueira e pela obsessão do homem em que tentou transformar-se, torna-se ele mesmo o desprezível monstro que tenta destruir.



1. Europa (1991)
Um jovem rapaz, Leopold Kessler (Jean-Marc Barr), vem de uma acolhedora América para uma Alemanha completamente destruída pela Guerra, onde o desemprego e a inflação fustigam toda a população e onde as doenças se propagam. Os segundos iniciais em que somos conduzidos, em primeira pessoa, por uma linha de ferro, são acompanhados por uma característica voz de serenidade, que nos prepara para o que vamos ter quando chegarmos "à Europa", quase empatando a nossa expedição, tentando fazer-nos parar.
A imagem está quase sempre a preto e branco, com o grande papel das tenebrosas cenas na caracterização grotesta do continente a que chegamos. Kessler vai trabalhar para os caminhos-de-ferro para ajudar a reconstruir o país de onde partiu. Na verdade, o desenvolvimento dos transportes é um dos pontos fulcrais para a recuperação social e económica da ex-potência mundial, que assume, desde logo, uma nova filosofia de cooperação e união, ao empregar um estrangeiro apesar os inúmeros desempregados nacionais que vão desesperando.
Mas a paz não vive descansada. Os lobbies contornam as novas regras e a resistência nazi ainda se faz sentir. Max Hartmann, dono da companhia ferroviária onde trabalha Kessler, a Zentropa, consegue a cooperação de um judeu, num processo de inspecção, para se livrar de possíveis acusações de colaboração com o III Reich, mas apenas até se suicidar. A cena é absolutamente brutal, com o sangue a transbordar da banheira e a fluir até ao corredor, para terror da sua filha Katharina e de Leopold. O resultado de uma consciência pesada, que nos deixa a balançar entre a o contentamento pelo castigo que sofre, e a complacência com o arrependimento profundo que revela sentir. É este último que acaba por prevalecer, com a luta clandestina que várias pessoas têm para garantir um funeral digno ao empresário.
Depois da cena da banheira, são as cenas entre Leopold e Katharina aquelas em que surge a imagem a cores, um reforço da emoção, da esperança que pode emergir. Uma paixão que brota e que admite sobrepor-se a todas as dificuldades, com a cena de sexo em cima de uma linha de comboio em miniatura simbolizando, julgo eu, a superioridade da sua relação a qualquer guerra, a qualquer reconstrução, a qualquer intriga ou traição.
Tudo acaba por complicar-se. Sem querer, Kessler é cúmplice no assassinato de um político da confiança dos aliados. A confusão instala-se no seu interior e o medo eleva-a ao estado de loucura quando os Werewolf, resistência nazi, raptam a sua amada, exigindo que coloque uma bomba no comboio, aquando da passagem numa ponte.
É a partir daqui que assistimos aos verdadeiros desafios do nosso personagem. Chega como herói e tem de sair como mais um dos cultores da desgraça. Chega como um romântico enamorado e tem de sair um desgraçado viúvo. Chega como um estagiário promissor e enfrenta um exame que não consegue levar a sério, por tudo o que o perturba. Agora, tudo se passa num comboio, um espaço fechado mas em contínuo movimento, criando a dicotomia entre a claustrofobia, o destino fatídico da perda a que não pode fugir (ou o seu amor ou a sua dignidade/lealdade/patriotismo) e a estrada infindável, a esperança de um novo rumo.
O twist final é absolutamente fantástico. Katharina era ela mesma um membro do grupo nazi Werewolf, ainda que lute por autonomizar a influência que deveria exercer sobre Leopold do amor que acabou por sentir por ele. Desesperado, louco, finalmente deixando para trás a ingenuidade que o trouxe à Europa, confrontado com um mundo cínico, hipócrita e sedento de poder e vingança, depois de assaltado na sua última esperança, desiste de desactivar a bomba que lhe havia toldado o espírito e voltado a iluminar a alma (a certa altura vai tentar voltar atrás), para deixar acontecer a explosão. Morre afogado, em mais uma sequência em que o narrador nos tenta absorver para o local, contando até dez e deixando-nos antecipar a dolorosa morte - a contagem vai em 6 e já sentia aflição.

Monday, April 26, 2010

Re-Animator (1985)


Uma peça já antiga que passou hoje no Culturgest (INDIELISBOA) e que resolvi ver.

Um puro sci-fi/horror bem ao jeito que não costumo gostar e que me surpreendeu pela positiva. Veio da direcção do americano Stuart Gordon (não conheço nada dele) e trouxe-me aos sentidos toda a atmosfera cientológico-medieval que eu sentia experimentar de todas as vezes que via ou ouvia histórias relacionadas com o mito do Frankenstein - um cientista maluco encerra um extravagante laboratório no seu castelo nas montanhas e consegue ressuscitar um morto.

Desta vez não há castelo. Herbert West (Jeffrey Combs) é um estudante de medicina que julga ter descoberto um reagente que, aplicado à fórmula do seu ex-mentor, pode trazer os mortos de volta para o mundo dos vivos. Acaba ir viver para casa de um brilhante estudante de medicina, Dan Cain (Bruce Abott), em cuja cave encerra o tal característico laboratório.

Dan acaba por se tornar o seu parceiro na experimentação do produto. Porém, as coisas correm mal. Primeiro, Meg (Barbara Crampton) acaba por ser metida ao barulho, ao assistir, involuntariamente, a uma experiência com um gato (era algo, supostamente, secreto). Segundo, o Director da faculdade e grande admirador de Dan, ao saber, pela sua boca, do projecto de West, declara-o como louco, retira-lhe a bolsa e proíbe-o de ver a filha (Meg). Posteriormente, os resultados finais não se revelam o esperado - os novos vivos não são mais "pessoas". Não são racionais nem têm qualquer traço de personalidade - quando acordam, são pouco mais do que animais ferozes e descontrolados.

É a partir deste último problema que tudo se complica. Uma ressuscitação corre mal, morre o Director, a sua ressuscitação corre mal e entramos no comboio de criação de pseudo-zombies. No meio de tudo isto surge o nosso antagonista: Charl Hill (David Gale). Hill é um neurocirurgião brilhante que desde cedo se vê confrontado com as declarações de West, sobre a forma como todos os seus estudos são plágios. É onde surge o ódio pessoal entre os dois. O médico acaba por descobrir do projecto dos dois estudantes e vai até à famosa cave onde é morto. E ressuscitado.

E eis que se inicia um plano B: o plano do mau: ficar rico e famoso com a nova descoberta e deliciar-se com Meg. West e Cain conseguem o comeback para, na morgue, terem de enfrentar um exército de novos vivos.

O final é triste. Depois de todos estarem definitivamente mortos (incluindo Hill e West; este último, permitam-me, sufocado por um intestino com vontade própria, *risos*), o filme termina com Dan a tentar reanimar a namorada, sem sucesso, numa imagem semelhante à inicial (depois dos créditos), que transmitem, especialmente pelas reacções da médica supervisora, a inevitabilidade da morte.

Porém ... Dan ainda tem um frasco do antídoto.

A construção do filme não está nada de especial, aliás, com alguns cortes um bocado bruscos. Mas há imagens que superam em muito o nosso caro SAW. O argumento podia estar ridículo, mas, como disse, achei-lhe graça (com as devidas incongruências, mesmo num sci-fi, como por exemplo, uma cabeça a respirar sozinha). Houve coisas que ficaram por explicar mas houve uma que me chamou particularmente a atenção: porque é que todos os ressuscitados ficam irracionais e estúpidos e o Hill ficou "normal" ?

Por fim, deixem-me deixar uma nota para o facto de estar para sair, em 2010, o House of the Re-Animator. Pensei que fosse um remake. Porém, as personagens estão ligeiramente diferentes. Não elas próprias, mas sim o seu percurso. Ao que parece, Meg é Dama de Honor e contamos ainda com destaque para o Presidente e Vice-Presidente dos EUA. Dan e West estão presentes e serão interpretados pelos mesmo actores, bem como a ex-namorada do médico. Se assim for, ou é uma versão totalmente nova ou, no fim de contas, este primeiro filme teve um final feliz.

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Saturday, April 24, 2010

The Shining (1980)


Baseado na obra literária de Stephen King, com o mesmo título, trazido para o cinema por Kubrick, The Shining é outro daqueles que entra, imediatamente no segundo em que termina, para a minha lista de filmes favoritos.

Uma família, pai, mãe e filho, isola-se num grande hotel de luxo, nas montanhas, longe da civilização, durante sete meses. Jack Torrence (Jack Nicholson), o pai, é um escritor que precisa de um "retiro espiritual" onde possa beber inspiração para o seu trabalho, motivo que o leva a candidatar-se ao cargo de caretaker (zelador) do Overlook Hotel, onde o ar é puro, a paisagem é linda e o sossego não tem fim.

Porém, a vida não será fácil - a tragédia protagonizada pelo último caretaker antes de Jack surge como um forte indício de fatalidade. À medida que Jack enlouquece, Danny Torrence (Danny Loyd), o filho, vê constantemente, na sua cabeça, imagens passadas do que lá se passou e imagens futuras do que se virá a passar, num claro paralelismo feito entre o assassinato da família Grady e o possível massacre da família Torrence. A este dom da criança, ensina-lhe Dick Hallorann (Scatman Crothers), dá-se o nome de shining, também partilhado pelo simpático cozinheiro do hotel. Já Wendy (Shelley Duvall), a mãe, procura o conforto do marido, assistindo impotente à sua transformação violenta e o bem estar da criança, assistindo a impotente às perturbações causadas pelas suas visões.


O argumento está de um engenho de mestre. Senti que toda e qualquer cena teve grande significado. A construção do suspense é perfeita: a tragédia dos Grady, as visões de Danny, os diálogos com Dick e a sua voz grave, quase em tom de aviso, as expressões fantásticas de Nicholson, tudo isso nos faz antever que a tragédia final é inevitável. Porém, sendo uma das chaves do sucesso do filme, são poucas as cenas ao longo do filme em que acontece algo realmente fora do normal, assustador, mau - o que só contribui para acumular mistério e tensão (e aqui também as músicas e os sons têm uma importância fulcral).

Para mim, há três cenas fenomenais - uma qualidade que só se concebe com um grande argumento e grandes interpretações: 1) os diálogos imaginários de Jack com Lloyd, o empregado do bar e com Grady (no fundo são quatro cenas); 2) "Redrum"; 3) a invasão final de Jack ao quarto da família, como "mítico" machado.

Entrei nos actores, mas tenho pouco a dizer. Shelley faz um bom papel, que não achei extraordinário. O mesmo não digo quanto à criança. É provável que o cinema tenha perdido aqui um grande actor, quando Danny decidiu que não queria fazer do cinema a sua vida - hoje tem quase 40 anos e é professor de Ciências numa escola do Michigan. Por fim, por muito boa que esteja a história, por mais saborosa que seja uma realização do K. (vénia para uma parte que aparece várias vezes, a inundação de sangue), o filme não seria o mesmo sem Jack Nicholson.

Wednesday, March 17, 2010

Dead Poet's Society: "Carpe diem." (1989).



Está na hora de pôr umas rodas nisto. E parece-me bem, antes de começar com notícias e de me lançar nesta nova temporada cinematográfica, sempre com uns clássicos e uns old school pelo meio, dar a minha humilde opinião daquele que é um dos meus filmes favoritos: Dead Poet's Society (O Clube dos Poetas Mortos), 1989.

Escrito por Tom Schulman, actual Vice-Presidente da WGA (West), e realizado pelo australiano Peter Weir, o filme conta a história de um professor de literatura inglesa, numa escola secundária bastante conservadora (Robin Williams, como John Keating) que, através de uma metodologia de ensino muito pouco ortodoxa, luta por fazer brotar a criatividade, a cultura e a liberdade intelectual no espírito dos seus alunos. É o seu sucesso que dá nome ao filme, já que é Keating que motiva Neil Perry (Robert Sean Leonard, Wilson da série House MD), Todd Anderson (Ethan Awke), Knox Overstreet (Josh Charles), Charlie Dalton (Gale Hansen), entre outros, a fazerem reviver o secreto e místico clube de poesia do qual o professor havia feito parte.

Esta é, digamos, a main story. Paralelamente temos muitas outras (v.g. a relação entre Neil e o seu pai, extremamente conservador; o amor proibido entre Dalton e Gloria) que transmitem sempre a mesma mensagem, que foi, para mim, uma grande mensagem e muito bem transmitida: a valorização da liberdade intelectual, o cultivo de uma opinião crítica e de uma atitude pro-activa no combate ao sedentarismo ideológico e filosófico e aproveita a vida.

É uma história muito bem construída, com cada pormenor a contribuir para o tema fulcral do filme - um grande exemplo: ainda no início, Keating manda os alunos ler um texto aparentemente genial, de um PhD. qualquer, que adopta um método matemático de avaliação da poesia. E vai falando disso. Ao mesmo tempo, um dos alunos passa religiosamente tudo o que vai sendo escrito no quadro; até que o professor diz que está tudo errado e o mesmo aluno, sem piscar os olhos, risca imediatamente o que tem no caderno. Ou, como já referi algures em cima, a relação entre Neil e o seu pai - o primeiro, farto de ser impedido de realizar o seu sonho de representar, desobedece ao conservadorismo autoritário do segundo, sempre ciente das consequências; mas sempre ciente do que era certo - "aproveita o dia".

Neil, personagem que se assume com um grande relevo, para mim, sempre acompanhando a interpretação de Williams, acaba por se ver privado de tudo o que era importante para ele: os amigos, a poesia e o teatro. O fim é trágico (suicida-se), numa mensagem algo fatalista, mas é o que a torna firme e valiosa - num dia estamos cá, no outro já não. Carpe diem.

Não me quero alongar. Resta-me terminar dizendo que tem uma das mais intensas (arrepiei-me) cenas de cinema que já tive a oportunidade de ver (clicar) (nota: para sentirem o mesmo, ou algo próximo, não tenham dúvidas de que têm de ver o resto do filme primeiro).

Oh Captain, my captain.