Showing posts with label History. Show all posts
Showing posts with label History. Show all posts

Thursday, December 30, 2010

Burnt by the Sun / Sol Enganador (1993)

Vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e do Grande Prémio do Júri de Cannes em 1994, Sol Enganador, de Nikita Mikhalov, que viu sair uma recente sequela que acabaria por se tornar o maior flop cinematográfico russo de sempre, é uma trama familiar, amorosa e político-ideológica absolutamente extraordinária.

Ao início são-nos despoletadas as considerações pela personagem principal, grande militar, um herói da Revolução de Outubro. A centelha política estava lançada.

Rapidamente o ambiente volta ao da sauna inicial, aos prados e às águas maravilhosas daquele outrora Império, a uma casa grande e cheia de pessoas, amizade e cumplicidade. Mas partíamos para noventa minutos de conflito familiar e amoroso, ou assim se adivinhava. Na verdade, nada se desequilibra na relação de Kotov com os seus tios, avós, primos, tudo é belo com a sua adorável filha, Nadya. A câmara aprofunda todas as divisões e localiza todos eles na sua diversidade de actuações. Uma distância q.b. . Até que chega Mitya, um personagem enigmático, incrivelmente profundo nas dúvidas que provoca quanto ao seu carácter, desde início. Os olhares e gestos, a pequena escapadela que troca com Marusia, mulher do General Kotov, tornam óbvia a passada história entre ambos; a traição iminente.

Com um argumento recheado de subtilezas nos diálogos, Mitya conta, à mesa, uma história a Nadya, uma lenda, um mito, que é obviamente a história entre ele, a sua amada e marido dela. Podíamos estar no registo telenovelesco, não fossem os contornos políticos começarem a surgir nas cenas seguintes, onde juntamos as peças da história verdadeira, onde enfrentamos a histeria de uma mulher envolvida num escândalo que só poderia ser mais do que pessoal. A trama dá o salto da traição carnal e emocional para a traição da pátria, no seu domínio prático (a espionagem) e teórico (a ideologia, que era a pátria soviética) e, nos últimos trinta minutos, eis que surge a história principal, belíssimamente cimentada pelo que se foi passando antes, numa transição de níveis de conflito incrivelmente engenhosa.

Kotov fora arquitecto com Estaline e arrastara Mitya das suas crenças Brancas, em 1923, altura em que ainda Marusia lhe pertencia, ingénuo defensor do czarismo (paralelo com a história contada a Nadya). Por uma mulher ou pela defesa de uma causa ? Passaram 13 anos, a idade aproximada da menina. Será ela filha de um amor ou de uma intransigência de ideais ? Ao aproximarmo-nos do climax, Kotov é acusado de espionagem para os alemães, num engenhoso plano por Mitya, cujo revestimento das motivações volta a balançar nos mesmos extremos: por uma mulher ou pela defesa de uma causa, a que ele agora já se converteu ?

Um dos planos finais é poderosíssimo e segue o plano rápido dedicado à fotografia daqueles que no início apelidei de arquitectos. Um balão com um gigante pano envergando o rosto de Estaline. Kotov tinha acabado de ser espancado, numa cena em que só vimos os agressores, em que só vimos o carro em plano geral, a afastar-se, como se nos houvéssemos esquecido dele. Até que, de repente, vemos a sua cara, sangrada e batida, num grande plano. Olha para as fuziladoras feições do chefe dos Vermelhos e compreende que também ele está no ciclo.

Que ciclo ? Bem sabemos como Estaline tinha o gosto em ir eliminando aqueles que lhe eram muito próximos. Mitya e Kotov, mais do que vítimas do amor por uma mulher, vítimas de um regime. Baseado numa história real, Marusia viria a morrer num Gulag, Mitya viria a suicidar-se (como acontece no filme e como engenhosamente o prevemos no início) e Nadya é professora de piano no Cazaquistão.

Saturday, October 30, 2010

Mistérios de Lisboa (2010)

Classificado como um "épico português", vistos pequenos trechos de belíssimas imagens, lidas algumas citações da mais consagrada imprensa internacional (e até da nacional - "obra prima perfeita", para Mário Jorge Torres do Ípsilon), com a grandiosa duração de 4h30min, o que mais se podia esperar de Mistérios de Lisboa, que valeu ainda um prémio de Melhor Realização a Raúl Ruiz, que não uma obra magnífica ?

Uma obra nada magnífica. Os planos são muito bonitos, graças a uma fotografia lindíssima, com uns décors, uma luz e um guarda-roupa irrepreensíveis, com enquadramentos milimétricos e movimentos de câmara de uma fluidez enternecedora (adoro câmaras em movimento), que criam uma tridimensionalidade proporcionadora de um grande ambiente de época e uma dinâmica de bailado e suavidade, que vai contrastar com a (tentativa de) "freneticidade" dos sentimentos retratados.

Porém, não é (só isto) que faz um filme. Logo na área da realização, encontrei algumas falhas que considero graves e outras que, acreditando terem sido intenção do director, resultaram mal para mim.
Falo de uma cena, na festa em que uma das mulheres recebe um bilhete e desmaia, em que no establishing shot vemos muitas pessoas (e a existência de um grupo alargado é algo que se depreende intuitivamente), em que as quatro ou cinco personagens que interessam surgem de repente num bocado do salão, mas um grande bocado sem ninguém, dando uma noção de perfeito ensaio, tirando qualquer credibilidade ao plano. Ou falo das cenas em que era claríssimo que a música que passava (um ponto positivo do filme) era diferente da que os músicos tocavam no ecrã. Ou falo dos planos experimentais ou talvez não, em que João/Pedro está doente, e que em nada combinam com o resto do tom do filme. Ou falo da cena (esta insere-se naquelas que foram intenção mas de que não gostei) em que Alberto de Magalhães rasga o bilhete, num plano totalmente contra-picado, e, lá em cima, toda a gente olha, em roda, feitos parvos.

Passo, enfim, para aquilo que, a meu ver, torna este um filme bastante mau - a fotografia pode ser lindíssima, mas não se pode descurar o argumento, ainda que nem narrativo seja, mas sim simbólico ou poético. Quem se lembrar de ter lido, neste mesmo blog, uma crítica ao filme "Milagre Segundo Salomé", poderá ter uma espécie de deja vú. Será por estarmos a falar do mesmo argumentista ? Quem sabe.

Em primeiro lugar, uma telenovela autêntica. Não é totalmente culpa do guionista, mas sim do próprio Camilo Castelo Branco, que assim escreveu a sua obra. De qualquer forma, passado para cinema, é uma autêntica e completamente desinteressante telenovela. Ou seja, o que se passa é uma conjugação de uma série de acontecimentos relativos a um certo número de personagens aparentemente desconexas, cujos caminhos acabam por se ligar de forma inexplicável, inevitável (a ideia romântica do destino), inexorável (o eterno sofrimento que comportam) e irritantemente melodramática.
Em segundo lugar, e creio que isto tem mais a ver com preferências pessoais, é uma estrutura narrativa que nada aprecio - os chamados "folhetins". Episódios sem grande ligação, que só acabam por fazer certo sentido no final, com relações causa-efeito ora inexistentes, ora forçadas, ora simplesmente estúpidas e chatas.
Em terceiro lugar, a introdução de momentos pseudo-engraçados (os arrotes do pirata/Alberto; o criado deficiente; o Marco D'Almeida), que foram completamente escusados. Não tiveram qualquer tipo de piada e só tiraram ainda mais qualidade ao filme.
Em quarto lugar, para mim o ponto mais crítico do filme, já que é o único que considero "deprimente": os diálogos. Uma tristeza. E, aqui sim, tal e qual como em Salomé. Personagens, em pleno século 18 ou 19, que dizem coisas como "Que seca !", "Que horror, meu amigo !", que se tratam constantemente por tu, e muitas, muitas outras coisas de que nem me lembro. Confesso, e até me senti estranho com isso, que, aqui, mandei valentes gargalhadas.

Termino fazendo referência a mais um ponto negativo do filme: os actores. No geral, péssimas interpretações - louvadas excepções que faço a Adriano Luz, Maria João Bastos, Albano Jerónimo e Joana de Verona. Destaco as piores (pelo menos relacionando a prestação com a importância da personagem): vi Ricardo Pereira a fazer de Ricardo Pereira (esperava muito mais); vi Afonso Pimentel a fazer de Afonso Pimental (não esperava outra coisa); vi Margarida Vila-Nova a aparecer 30 segundos e a fazer o pior desmaio que vi no cinema (grande desilusão). Vazio.

Não deixem de ir ver o filme. A maior parte das pessoas com quem já falei sobre ele ou gostou ou adorou. Opiniões. O balanço que faço, no entanto, não poderá nunca ser positivo. O facto de terem sido 272 minutos só tornou a coisa mais entediante.

(a cena mais cómica do filme)

Saturday, September 11, 2010

Os melhores das décadas, 2000: Gladiator


Não me importo rigorosamente nada com vozes que bramem com a mais mortífera convicção de que Gladiador não passa de um aglomerado de texto previsível, fantasia e pseudo-comoção hollywoodesca, produzida, mecanicamente, em massa. Aliás, não concordo com isso. Não o classifico sequer como guilty pleasure, porque esses são aqueles filmes provavelmente maus, nomeadamente para a visão da generalidade da crítica, e dos quais gostamos sem saber bem porquê. Deste eu gosto, gosto muito, e sei bem porquê.
A fiabilidade histórica pura e simplesmente não existe, algo que não vejo como um erro de percurso, como uma desgraçada falta de preparação ou uma tentativa barata de ganhar uns trocos. O que Ridley Scott aqui faz é, partindo de outro épico, "Spartacus" (dir., Kubrick), criar uma estória com estrutura e conteúdo quase matematicamente clássicos, elevados a uma emotividade e magnanimidade envolventes e inspiradoras para os sentidos, mais do que para o intelecto. Maximus é, no fundo, um héroi literal, oposto a um anti-herói literal (os heróis não se fazem a eles; fá-los o povo, e, aqui, as pessoas do Coliseu falam por si), com objectivos e conflitos claríssimos e temporalmente distanciados de forma minuciosa, de uma calculabilidade de argumento tão evidente que, por paradoxal que seja, não consegue deixar de me envolver. É a genuína estória do bom contra o mau, contada com o recurso a uma civilização e cultura belíssimas, a uma fotografia muito bonita e a uma banda sonora incrivelmente bem conseguida, tornando não só aceitável como também necessárias as referências à afterlife.

Friday, July 9, 2010

Os Filmes dos Presidentes IV - António Ramalho Eanes

Não deverá ser surpresa a escolha do nosso primeiro Presidente da República eleito no pós-25 de Abril, ou não fosse António Ramalho Eanes militar (General) e não fosse O Resgate do Soldado Ryan um dos maiores filmes de guerra que temos connosco. Baseado na estória verídica dos irmãos Niland, é com vigorosa emoção e com sonhador e empenhado realismo (os próprios actores estiveram algum tempo no exército, como recrutas - experiência que garantem não querer voltar a repetir) que Steven Spielberg pinta o cenário dos últimos dias da II Guerra Mundial, contando a jornada de oito homens destacados para salvar apenas um: James Francis Ryan.

Os primeiros trinta minutos de filme são de uma mestria louvável. As dezenas de homens, que o director faz parecerem centenas, emergem de um silêncio perturbador para uma confusão de correrias, movimentações e estratégias, dando origem a um caos absoluto, nem sequer regular mas sim arritmicamente acelerado (onde nos é introduzida uma câmara tremida que nos acompanha o resto do filme e que muito contribui para o nosso envolvimento no mesmo). O plano inunda-se não só de um mar tormentoso e sufocante (com uma câmara que cessa tudo à sua volta, menos a imagem, quando submerge - pormenor belíssimo) mas também de gritos de morte ou de ordem, tiros de todos os lados, bombas e embates - o barulho exuberante e insuportável, a que se vai aliar uma música que quase nunca aparece (excepção feita para a nostálgica e pseudo-pacífica sequência em que os soldados ouvem Edite Piaf).

O céu carregado, a terra e a poeira, a chuva torrencial, e as vestes que envergam os soldados, as cores que os cobrem, escuras, com cinzentos que ameaçam rasgar-nos o coração, introduzem o tom cruel e desolador da guerra, injectado por entre imaginárias paredes metálicas e gélidas, compostas pelo armamento que os destrói, sustenta ou motiva.


No meio de tudo isto, apenas duas cores conseguem sobressair: o vermelho e o laranja. É o sangue que jorra dos buracos dos corpos, que se fixa em salpicos nas caras dos sobreviventes, que flui pelo outrora límpido areal, que tinge a água do mar de um vermelho agoniante, qual última ceia. É o fogo que queima a carne, o metal e o espírito, em nome da chama não só de uma nação mas também do Mundo.
São os dois tons que marcam o filme. Se pelo primeiro se narra o início da histórica vitória dos Aliados, pelo segundo narra-se uma epopeia de coragem, sacrifício, irmandade e dignidade - "Não percebo esta matemática, em que sacrificamos oito homens para salvar um.". Uma epopeia de motivações e limites do Homem - Upham, que se recusa a disparar sobre quem quer que seja, consegue salvar um soldados alemão da morte, libertando-o, o que nos deixa a interrogação "será que todos os soldados nazis defendiam uma causa ?". No final, acaba por premir o gatilho, assassinando quase à queima-roupa esse mesmo soldado, que se voltara a juntar aos compatriotas nazis, o que só nos complica o dilema da enunciada pergunta.

Uma obra épica que conjuga tudo aquilo que me agrada ver no cinema: uma mensagem profunda, ou não fosse este um sincero agradecimento à memória de toda uma geração a que se exigiu a democracia em que hoje vivemos e uma estória absolutamente contagiante, emotiva (o pathos) e narrativamente fantástica.

"I have here a very old letter, written to a Mrs. Bixby in Boston. "Dear Madam: I have been shown in the files of the War Department a statement of the Adjutant-General of Massachusetts that you are the mother of five sons who have died gloriously on the field of battle. I feel how weak and fruitless must be any words of mine which should attempt to beguile you from the grief of a loss so overwhelming. But I cannot refrain from tendering to you the consolation that may be found in the thanks of the Republic they died to save. I pray that our heavenly Father may assuage the anguish of your bereavement, and leave you only the cherished memory of the loved and lost, and the solemn pride that must be yours to have laid so costly a sacrifice upon the altar of freedom. Yours very sincerely and respectfully, Abraham Lincoln."

Avanço que terminarei a rubrica "Filmes dos Presidentes" com um último artigo, será "o meu filme", um dos meus favoritos.

Thursday, June 24, 2010

Os Filmes dos Presidentes II - Jorge Sampaio

Il Gattopardo / O Leopardo (1963) é um longo mas belíssimo retrato da queda da aristocracia siciliana durante o Risurgimento, movimento de unificação da Itália.

O trabalho fotográfico é magnífico, imprimindo uma película em tons quentes (castanhos, vermelhos, laranjas, amarelos), que se dignam até a revelar um balanço entre o campo de acção dos revoltosos e a alienação em que continua a viver a nobreza. De um lado a terra, a poeira, o sacrifício de sol a sol, os tijolos das ruínas em que se abrigam, os próprios uniformes; do outro, o sol na paisagem, um fabuloso trabalho de decoração e costura - os panos vermelhos, o ouro, o requinte, os vestidos das mulheres, as decorações. A isto se alia uma câmara muito natural e várias boas prestações dos actores, sempre incrivelmente corteses, mergulhando a obra numa estranha concepção realista. Estranha porque se trata de uma sociedade de há 100 anos, não podendo nós deixar de acreditar que foi assim mesmo que tudo se passou. A mis-en-scene é, neste filme, perfeita. A música, durante todo o filme, é deliciosa.

O Príncipe de Salina é a personagem central deste reflexivo romance histórico, cujas acções vão muito para lá de uma preocupação superficial e materialista em relação à condição da sua família. Se o mais perceptível fio condutor da narrativa nos leva a vários bailes e festas da alta nobreza, a arranjos mais ou menos elaborados, mais ou menos requintados, de romances efémeros (Concetta e o soldado) ou amores eternos (Tancredi e Angelica - um belíssimo retrato, diga-se), estão sempre implícitas (e por vezes explícitas) valorosas reflexões de filosofia política.

A ideologia. Tancredi junta-se à revolta gilardina, ainda que sem qualquer censura por parte de uma família defensora da manutenção do estado de coisas, para mais tarde acabar por se aliar ao exército real, por ter mais condições. Esta mudança de atitude é quase imperceptível quando volta do combate, em que apenas se nota diferença no uniforme algum tempo depois da sua chegada, mas aguça-se quando defende, com indignação, a morte dos desertores do exército real - se foi contrário ao que fez, em sentido, não o foi, certamente, em direcção. Com que modelos, com que ideais, com que convicções temos legitimidade para defender uma causa ? Uma disputa entre a honra e a lealdade e a segurança (material) e estabilidade (emocional).

A ruptura de uma ordem social e o surgimento de novos paradigmas. Se nos perguntarmos sobre a razão pela qual o Príncipe tão serena e amigavelmente compreendeu e não se opôs à adesão à revolta por parte de Tancredi, encontramos a resposta nas suas palavras: "Para que tudo se mantenha como está, é preciso mudar as coisas.". Talvez por o próprio Visconti ter pertencido à aristocracia, não podemos deixar de interpretar aqui e em todas as imagens, uma certa nostalgia pela mística que envolve a realeza, algo que, em 63, acabou e não volta mais. É por isso que o chefe da família, completamente ciente disto, mas não descurando os problemas que criaram a crise política em que se vive, se sente no dever de se manter fiel ao seu brasão, às suas tradições, à sua história, esperando, paradoxalmente, um triunfo da mudança. A mudança nunca manteria as coisas num sentido literal, mas evitaria sim que um reino, uma família e um povo caíssem na miséria da vergonha e do esquecimento - a preservação da história (ou não fosse o Homem feito de memórias). E novas questões se levantam, como quais os fundamentos da ruptura, a legitimidade da mudança e o papel de cada um como catalisador, travão ou moderador.

"Nós éramos os leopardos, os leões; aqueles que vão tomar o nosso lugar serão as hienas, os chacais; e uma parte de todos nós, leopardos, chacais e ovelhas, continuará sempre a ver-se a si mesmo como o sal da terra."