Saturday, July 17, 2010

Fellini e a estrada da Vida: La Strada (1954) e Le Notte di Cabiria (1957)

A Estrada da Vida, que dá nome a este artigo e cuja dimensão percorre o pautado desenvolver destas duas estórias, e a As Noites de Cabíria são duas serenas e magníficas obras de transição entre o cinema neorealista de Rossellini, De Sica e Visconti e o sonho, a fantasia e a questionabilidade do real de Fellini e Antonioni (voltarei, noutro artigo, a Os Inúteis). Partindo de uma marcada análise às dificuldades vividas em Itália, no pós II Guerra Mundial, o director concede-nos, nestes dois filmes, um bilhete de embarque em melódicas e visualmente deliciosas jornadas pela simplicidade com que os mais primitivos sentimentos nos conduzem pelo caminho terreno a que estamos destinados, ou simplesmente dispostos a fazer - do amor altruísta e puro ao interesse egoísta e manchado, da esperança ao desespero, da expectativa à frustração, da ingenuidade com que começamos este percurso e da dureza e cepticismo com que temos de o enfrentar. Da vida à morte.



Na primeira das películas, seguimos a viagem da inocente e ingénua Gelsomina, vendida pela sua mãe, por 10.000 liras, a um deambulante, reservado, autoritário e reles artista de circo - Zampano. Sem escolha, ofuscada pelas prometidas maravilhas de uma vida de cidade em cidade, ansiosa por aplausos que preenchessem e aquecessem o coração, deslumbrada pela ideia de se sentir capaz, útil e talentosa, acaba por se apaixonar pelo patrão, caindo na realidade e submetendo-se a uma vida mediana, melancólica e submissa. Dorme ao relento, não é respeitada, não é livre. Não é amada.
A certa altura, depois de tentar fugir, assistimos a uma inesperada compaixão, delicadeza e preocupação de Zampano, quando abandona, percebemos aí, "a sua amada", para o seu bem, deixando-lhe algum dinheiro. A última cena é belíssima e agridoce. Numa praia deserta, escura e húmida, percebemos que toda a relação entre os dois, uma dicotomia entre a paixão e a indiferença, foi toda ela uma mentira - Zampano também amava Gelsomina, agora morta. E por isso sofre, e nós sofremos com ele, como se nos deixássemos cair num poço vazio e escuro que mais não é do que a morte, uma demarcação entre o que foi e o que poderia ter sido.
Visualmente brilhante - límpido, polido, equilibrado entre o luminoso e a sombra escura - e melodicamente sincero e emotivo (em duas palavras, "Nino Rota").

Em As Noites de Cabíria, com mais uma fantástica interpretação chapliniana de Giulieta Massina, enveredamos em mais uma busca pelo amor, pelo carinho, pela relação com o outro e, assim, pelo significado da vida, num constante alternar entre a alegria e a tristeza. Cabíria é uma prostituta de rua, que vive num bairro pobre juntamente com as suas colegas de profissão e que faz renascer a ingenuidade e inocência de Gelsomina. Achincalhada pelo seu optimismo e pela sua constante luta por uma vida melhor, vê-se abandonada por homem mediano que só queria o seu dinheiro e por um actor famoso que nela não via mais do que um capricho de que nunca se chega a servir.
Depois de uma maravilhosa cena de hipnotismo, em que quase viajamos até ao mundo com que a personagem sonha, Cabíria parece encontrar o seu verdadeiro amor. A estória volta a repetir-se e o filme termina quase como começa - a nossa personagem está à beira da água e o seu companheiro mais não quer do que o seu dinheiro.
Uma obra em que a luz acompanha a esperança de um coração, em que a sombra e os cinzentos, ou o mero escurecer, orientam a inevitabilidade do esconderijo, da resignação e da tristeza e em que a música nunca nos deixa voltar ao mundo real, do princípio ao fim.

5 comments:

  1. Gostei muito do texto! Oh, já tenho saudades desses dois filmes... principalmente dAs Noites de Cabíria, que adorei, adorei sinceramente. Belíssimo mesmo. Tal como A Estrada, que também é bom.

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  2. Ando para ver Fellini há muito tempo.

    Abraço
    Cinema as my World

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  3. Olá, Diogo.
    Também adoramos o Fellini (e, claro, adorámos o teu blog). Já conheces a BAD BEHAVIOR? Estamos a preparar cinema de terror em Portugal. Dá um salto ao nosso blog e divulga-o. Estamos a preparar um cinema português totalmente novo. Mesmo! Até breve. http://badbehavior.wordpress.com/

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  4. Interessantíssimos pontos de vista, meu caro. Voltarei.

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  5. Bem vindo, Matheus. Muitíssimo obrigado, e por cá te aguardo ;)

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