Tuesday, August 31, 2010

Os melhores das décadas, 2000: Requiem for a Dream


A Vida não é um Sonho não só é, para mim, um dos melhores deste ano e desta década, como é também um dos melhores de sempre. O argumento não é uma tentativa escandalosa de comercializar uma visão ética e política das vivências, mas sim um credível retrato de profundos problemas existenciais da nossa sociedade, resultantes de todo e cada aspecto distópico em que vivemos, que são os vícios que nos corroem de fora para dentro e de dentro para fora, queimando-nos física, psicológica e socialmente. Isto resulta de uma concepção rigorosa da evolução da estória que seguimos, ou mais especificamente, de uma preocupação humana e artística em produzir uma coerente, emotiva e alarmante evolução dos estados presentes das várias personagens que seguimos - quatro toxicodependentes.


A concepção visual podia ou não fazer jus a este grande trabalho escrito, e Aronofsky acabou mesmo por conseguir aqui um majestoso estímulo visual, transmitindo a sua mensagem da forma mais intuitiva possível, quer provocando uma interpretação do intelecto, quer provocando uma reacção dos sentidos. Numa atmosfera negra, não das trevas, mas do escuro da incerteza do propósito, do prazer de viver, há os split screen estabelecedores de dicotomia, stress e simultaneidade/confusão, há os aceleradamente rítmicos close shots dos segundos chave da rendição aos narcóticos, há repetição de motivos, distorções e cores, há uma progressiva transformação da realidade em sonho (nomeadamente na mãe), há uma câmara tão drogada como o sangue das personagens, ora rápida e rotativa, ora estática e sonolenta. Ou seja, o rigor do argumento é justamente complementado pela minuciosidade dos planos e da montagem.


A cena final é o perfeito contrário de uma epifania. Uma sucessão e contínua re-sucessão perturbadora de sequências de perversão sexual, doença, loucura e prisão, até atingirmos um ponto aflitivamente intenso das repugnantes consequências da droga, ao que se segue o mais duro de tudo isso: a continuação da vida, depois de perdas profundas - a perda de um braço, a perda da liberdade, a perda da mente, a perda da dignidade. Mais do que tudo, a perda das relações e a perda de nós próprios.

9 comments:

  1. Grande texto, parabéns. Muito bem escrito e de leitura bastante aprazível.

    O filme é mesmo tudo isso. Estou em perfeita sintonia com a tua posição. Também o considero um dos melhores filmes de sempre. Genial, genial, genial.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

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  2. Acho que irei gostar deste! Também tenho cá o The Fountain para ver...ouço maravilhas de Aronofsky, quero colmatar esta falha rapidamente!

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  3. Sem dúvida alguma um dos dez melhores desta década.

    Abraço.

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  4. ROBERTO: Muito obrigado. A evolução que a minha escrita tem sofrido tem muito a ver com o que também vou lendo e garanto-te que o teu poder de análise e argumentação tem sido fundamental. Por isso, reitero o meu obrigado.

    CATARINA: Colmata, colmata, como diriam os nossos amigos do Gato Fedorento. A sério, deves ver. Este é o meu favorito dele, mas gosto de todos eles.

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  5. É, sem dúvida, dos meus filmes preferidos.

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  6. Subscrevo inteiramente o Roberto, parabéns, Diogo ;)

    É um filme grande, grandioso. Uma experiência visceral, uma tragédia moderna que delira pelos caminhos da dependência humana. Único.

    Ainda assim, The Fountain consegue superá-lo.

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  7. FLÁVIO: Muito obrigado. Tenho dificuldade em escolher um ou outro, mas, por acaso, tendo a inclinar-me para este. Abraço.

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  8. Não podia ter descrito melhor o filme do que tu o fizeste. Gosto muito dele e mesmo que eu só desse prémios uma vez por década, ele estaria no meu top-10 de nomeados de certeza absoluta.

    Não entendo como há detractores do filme a dizer que ele não presta. Que me digam que é muito violento para eles, tudo bem. Agora que me digam que o filme é ridículo, é pointless... Não me gozem! É o mesmo que dizerem que o "Inception" é um filme básico de acção.

    Ai o que eu anseio pelo "Black Swan"!


    Abraço,

    Jorge Rodrigues
    http://dialpforpopcorn.blogspot.com

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  9. JORGE: Muito obrigado e, tal como tu, muito anseio por Black Swan !

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