Showing posts with label Cinema Francês. Show all posts
Showing posts with label Cinema Francês. Show all posts

Friday, May 6, 2011

IndieLisboa'11: Carlos (2010) (dia 1)

Carlos, de Olivier Assayas, foi o filme que escolhi para começar a edição deste ano do festival e tenho sérias dúvidas de que outra opção pudesse ter sido tão boa. Esta é a história (biográfica, na verdade) de Ilich Ramírez Sánchez, de nome de código "Carlos", um venezuelano revolucionário que, em plena guerra fria, se junta à causa palestiniana pelos conspurcados trilhos do Médio Oriente.

Com a sua câmara oscilante, o realizador traz-nos a fragilidade das relações do seio das teias do terrorismo (a instabilidade é constante, a anarquia tem aí os seus embriões, na completa ausência da força da institucionalidade) e ainda assim regista o seu dinamismo e agilidade, quer seja no planeamento de inteligentes operações, quer seja no aguçado tráfico de armas.

Assayas construiu um guião muito coeso, consistente e bem estruturado, capaz de agarrar o espectador durante as quase três horas, servindo-se da personagem principal, muito bem interpretada por Édgar Ramírez, para ir levando o filme para a frente, enfatizando a psicologia, a paixão da revolução e os marcos históricos, mais do que um plot surpreendente ou de grande destreza (afinal, a História já foi escrita). Passa por cenas incríveis, como a comunhão entre a tensão sexual e a "líbido do armamento", com Carlos e a namorada (e as devidas inserções do elemento "forma física", ao longo da película), os assassinatos dos três polícias, tão bem duziado pelos tons e melodias latinos de relief num belo jogo de tensão, ou mesmo a sequência do sequestro da cimeira da OPEP.

É com um ritmo rápido e bem marcado (até formalmente, pelos elucidativos dissolve) que vamos escalando desde o início dos anos 70 até ao à segunda metade dos anos 90, naquilo que foi uma das coisas que mais me surpreendeu. Parece-me muito difícil conseguir construir uma narrativa, no pouco tempo que pode ter um filme, por tantos anos, com tantos momentos importantes em vários deles - algo muito diferente, por exemplo, da famosa montage-sequence de Raging Bull. Porém, se no geral isso bem me encantou senti que os últimos 45 minutos, em que o próprio Carlos já reconhece o seu destino, entramos numa corrente ligeiramente repetitiva e, por vezes, arrastada, tirando ao final do filme a pujança que chegou a criar e que merecia, de facto.

Tudo vai combinando para nos irmos embrenhando cada vez mais nas teias do tráfico de influências, da corrupção, da negociação, da diplomacia, de todo um espectro de relações entre alguns dos mais poderosos países do Médio Oriente (Iraque, com Sadam; Líbia, com Khadafi; Sudão, Arábia Saudita, Argélia, Israel), nas constantes e bruscas mudanças da conjuntura (como as que ditou o fim da Guerra Fria, a "derrota do comunismo"), na vida e obra de um homem que quis ser um Che, e que terminou os seus últimos tempos em liberdade como um resignado, fugitivo e gordo. Toda a atmosfera e elementos narrativos apontam para isso mesmo, ao conceder uma hora de filme a um Carlos fisicamente muçulmano (um belo pormenor, na gradual transformação do bigode e do cabelo), esquecido de uma luta de verdade, vivendo sob a asa de protecções efémeras, de família destruída e com ingénua nova tentativa, doente.

Saturday, April 2, 2011

Du Rififi Chez Les Hommes / Rififi (1955)

Colocado na lista negra de Hollywood, após ser acusado de partilhar ideais comunistas, Jules Dassin rumou até França, para onde transportou um certo estado de espírito niilista e negro, a partir do qual conseguiu dar corpo a uma das maiores obras primas do crime e do heist film, sob uma filosofia e um estilo particulares, o noir. Para além do selo de "inimigo político", o autor não se livrou de várias convulsões de produção, por falta de meios e pelo seu repúdio com o livro original de onde o argumento foi adaptado, que François Truffaut apelidou de "o pior livro de crime que já li", contrapondo, sobre a versão filmada, com "um dos melhores filmes de crime que já vi". De facto, com um argumento incrivelmente inteligente, muito bem construído, cheio de mistério, tensão e marcos emocionais muito fortes; de uma sensibilidade de colocação de câmara e composição que transpõe 120 páginas para as mais sugestivas e deliciosas imagens em movimento; com uma música e uma utilização do som maravilhosas, Dassin cria, aqui, um dos melhores filmes de todos os tempos.

As personagens são construídas de forma magnífica. Tony, acabado de sair da prisão, bebe e joga cartas - um niilista, sem rumo. Os seus amigos, Jo e Mario, precisam dele e querem-no para o próximo golpe, desta vez a uma riquíssima joelharia - mesquinhos criminosos (talvez fossem, numa história mais banal!). Mas existem outros elementos e pequenos subplots, que aprofundam todas as personagens e aperfeiçoam o nosso conhecimento sobre cada uma: a antiga relação entre Tony e Mado, traidora, cujo reavivar da memória confere uma nova dimensão à inutilidade da sua vida, e lhe faz brotar um sentimento de vingança contra o próprio mundo, e o impele a aceitar participar no roubo das jóias - um magoado, um decadente, um grande anti-héroi noir. Já Jo Séldois é um carinhoso e afectuoso pai e esposo, como vemos pelas brincadeiras que tem com o filho e pela forma como conversa com a mulher. Mario é, igualmente, um apaixonado pela sua companheira e brincalhões vão vivendo os dois. E chega César, directamente de Milão, o outsider, que começa por encarnar a competência, a pedra de toque necessária para o golpe.

E assim vamos, ao longo do filme, conhecendo cada vez mais estes quatro homens, nomeadamente no crescendo da colaboração entre si - a sua compenetração, a determinação, a minúcia. Tudo corre como planeado e à face negra de Jo, Mario e César corresponde um amor à vida e à família: o primeiro quer utilizar o dinheiro para com o filho; o segundo, para com a mulher; o terceiro, para com as irmãs. Tony continua a caminhar na sua estrada sem grande destino - "Não sei [o que fazer ao dinheiro].".

A partir daqui, as relações entre os quatro homens são postas à prova, num terceiro acto em que nos debruçamos completamente sobre a personalidade da nossa personagem principal e assistimos a uma das mais belas transformações de sempre, onde vemos nascer um verdadeiro, ainda que tardio, herói. O gatilho para isto é dado por César, aquele que começou desconhecido, que chegou a companheiro (diz Tony, "Eu até gostei de ti"), e que sua luxúria para com Viviane coloca na posição de traidor máximo, ao revelar ao gang de Pierre (actual marido de Mado) a localização do pequeno tesouro. A primeira consequência é o seu aprisionamento; a terceira, o assassínio de Mario e sua mulher; a terceira, o rapto do filho de Jo. Por aqui, reentra o valor do subplot de Stéphanois, que assassina César ("Quebraste a regra [dos companheiros do crime]") e que tem de ultrapassar o seu rancor e mágoa para com a sua amada para evitar a catástrofe total - a perda de todo o dinheiro e a morte do menino e de Jo.

Tudo acaba em doce-amargura, depois da peripécia. O menino é salvo, depois da morte dos gangsters (à excepção de Pierre). Por falha de comunicação, Jo perde a cabeça e avança até à toca do lobo, acabando morto. Imediatamente a seguir, Tony é ferido de morte e ainda consegue acabar com Pierre. O menino chega a casa, a salvo, e a mala de dinheiro cai nas mãos da polícia.


É um filme recheado de subtilezas de argumento e de câmara extraordinários. Pequenas acções descrevem tudo o que foi acima contado e todos os pequenos beats de evolução, todas as motivações e antecipações de todos os subsequentes passos - desde a tensão da meticulosa preparação do assalto, quase sem falas, ao próprio assalto (cerca de 30 minutos de pleno segundo acto, sem quaisquer diálogos, apenas com sons e música, numa das melhores sequências que já vi), à tensão que existe pelos vários elementos que surgem lá fora, durante o assalto (em relação até com a planificação a que fomos assistindo; ou os inesperados polícias desconfiados), ao rigoroso, fluido e constante crescendo de um quase utilitarismo maquinal na direcção de um desespero marginal, emocional e cru.


Há cenas absolutamente memoráveis. O espancamento de Tony a Mado, no início, em que a câmara, envergonhada mas presa à forte personalidade do homem, fica no limite de não assistir a nada, com a imagem do interior do quarto ao fundo, em profundidade. O serão no clube de Pierre, com a dança de Viviane (aqui), com as sombras lá atrás. As montagens-sequência do planeamento, que já referi, e todo o assalto. A morte de César, por Tony, em todo o seu primeiro contacto, até ao impiedoso e magoado disparo, em ponto de vista subjectivo. Há mais, muitas mais.

Perdoem-me por tantas palavras, até porque são demais para que as leiam. Mas a surpresa foi tal, a emoção foi tal, que não poderia deixar de o fazer. E deveria escrever mais, mais e melhor, mas outras questões não mo permitem, pelo menos para já. Não é apenas um dos grandes film-noir de sempre, é um dos melhores filmes de sempre. Agora, tenho pena que Al Pacino esteja a preparar o seu remake para 2012.

Saturday, August 14, 2010

Hiroshima, mon amour / Hiroshima, meu amor (1959)

Passam hoje, dia 14 de Agosto de 2010, 65 anos desde que começou o final de um dos mais bárbaros e desumanos conflitos entre nações - minuciosamente planeado, o ataque nuclear a Hiroshima, no Japão, marcava a ascensão dos Estados Unidos à ribalta da Guerra e deitava por terra um aliado chave, ainda que não formal, da Alemanha nazi.

Mas o histórico acontecimento foi, e ainda hoje é, muito, muito mais do que um marco de viragem da realidade estratégica, militar, económica e geopolítica do Mundo. É, paralelamente, numa dimensão tão mais profunda e sombria, um dos maiores símbolos do poder do Homem para sentir, e, se sente, para sofrer, para viver ou para morrer, para optar pela vida ou pela morte, para amar ou para odiar, para escolher e para gerir uma existência material e espiritual.
Não serve esta introdução de qualquer tomada de posição quanto ao nuclear – se a maldade, e o adjectivo é propositadamente inocente, do bombardeamento foi de uma intrínseca inevitabilidade, também o foi em extrínseca necessidade.
Hiroshima, meu amor, porventura a mais bela obra prima de Resnais, é uma estória de amor e uma história do Homem, ou parte dela. Uma francesa e um japonês estão apaixonados e não sabemos os nomes deles, até ao final. O filme abre com um abraço imerso em sombras, salpicado de água, acompanhado por uma suave e enternecedora música, e é a partir daqui que assistimos a um retrato lindíssimo, poético, suave e subtil das consequências humanas do lançamento da primeira bomba atómica.

Há um paralelismo inicial entre uma Hiroshima parcialmente restaurada e imagens chocantes, aterradoras, quase nojentas, do pós-explosão, pautado por excelentes long-shots e por uma montagem rítmica, que evidencia o contraste entre a simetria da reconstrução e a descoordenação da destruição. O timbre da voz da rapariga e a forma como se dirige não só ao seu homem, mas também a todos nós, confere-lhe um encantador tom documentarista.

O abraço que inicialmente se parece com uma confusão de membros, são afinal o resultado da evidência carnal do amor entre dois seres humanos – a relação, o sentimento. É assim que vivemos, e assim era antes da II Guerra Mundial – era assim que se vivia em França, em Inglaterra ou nos Estados Unidos; era assim que se vivia na Alemanha ou no Japão. É assim, o Homem.

Ao olhar para o seu amante adormecido, a mente da rapariga, por instantes, viaja até uma imagem semelhante, desta feita, de um soldado em sangue, isolado, nos seus braços. Que diferença havia entre estes dois seres humanos e os restantes, que morreram em combate, ou na explosão ? Que diferença havia, na altura da tragédia, na inocente juventude de um francês ou de um japonês ? “O que fazias em Nievres ?”, pergunta-lhe ele, enquanto se olha no espelho – e bem o faz, pois as vivências mais sinceras de um eram reflexos das do outro – o que é isto das classes e das raças ?
Depois de sermos presenteados com imagens sensibilizantes de um filme dentro de um filme (os cartazes da manifestação, que vemos de um ângulo baixo, mas que são filmadas por um ângulo de cima – a omnipresença da indignação), viajamos até ao passado da jovem, algo que nos ocupa quase até ao final da película. Vivia em Nievres, passeava de bicicleta pelos campos, namorava um soldado inimigo (alemão) - a música que nos acompanha é belíssima e torna tudo ainda mais singelo, ainda mais perfeito.

Conta-nos a sua história, como foi viver o seu amor, o que sofreu por ele, o que gritou por ele, o castigo a que foi sujeita pela diferença das nacionalidades (a caverna sombria onde quase enlouqueceu, bebendo o seu próprio sangue e o sal das paredes) e dirige-se ao seu amante japonês como se fosse ele o seu primeiro amor, esse tal amor do seu passado – não será que ficou mesmo louca ? A certa altura conta-nos como a luz voltou, como se restabeleceu, como a classificaram de “razoável”. Como foi que o fez ? Numa palavra, aliás, citando-a: “Esqueci.”.

Por diversas alturas, até este ponto do filme, desde o início, ambos estiveram para se separar – ele para ficar no Japão, ela para voltar a França. Ele sempre insistia para que ela desistisse da viagem, ele sempre hesitava, mas sempre reclamava ir – e depois, sem explicação, sem qualquer interrogação, voltavam sempre a encontrara-se. E tudo se passava num dia apenas, que parecia uma eternidade.

Rebenta uma confusão de sentimentos. O seu grande e passado amor conjuga-se com a recente e até então efémera paixão, com a assimilação dos dois homens. A raiva e a vergonha assoma-a quando se arrepende de ter contado a história do seu amor proibido. A indecisão, o susto, o medo, a necessidade e a vontade envolvem-na quando, uma vez mais, não sabe se deve ficar ou partir – já jurara ambas as acções.

É inevitável. Ou foi. O passado foi bom, foi feliz, mas agora entristece, magoa, corrói. Se há o desejo de lá voltar, esse desejo tem de ser reprimido, porque o passado de que se lembra não pode ser agora marcado apenas pelos momentos bonitos que o constroem, mas pela antídese que são os que se seguem – porque só existe um passado face ao presente – e esses são maus, aflitivos, suicidas. É por isso que esquece, que tem de esquecer, que não consegue deixar de esquecer.
Mas não é a memória que desaparece, não são as imagens ou os sons que se obnubilam, ou como nos teria contado tudo ? É a emoção, é o sentimento de pertença a um mundo estranho, a uma fantasia. “A rapariga de Nievres está morta”, repete. Resta apenas a rapariga que agora vemos.

A bomba caiu, parte da humanidade morreu – não só em quantidade, mas em emoção, em sentimento, tal como o que foi esquecido. Uma transição triste mas necessária de um mundo a muitos de nós não pertenceram, para o único que conhecemos – mas, o mal já estava feito, e somos um pouco mais pobres em humanidade.

Ela fica com ele. Não o contrário. Antes do fade-out, sabemos que o nome da rapariga é Nievres. O dele, é Hiroshima.

Lindo, sublime, mangnífico.

“ – O que significava para ti Hiroshima, em França ?”
“ – O fim da Guerra. Quero dizer, completamente. É incrível que se tenham atrevido a fazê-lo. É espantoso que o tenham conseguido. E também o início de um medo desconhecido, para nós. E depois, a indiferença. E o medo da indiferença, também.”
“ – Onde estavas tu ?”
“ – Tinha acabado de sair de Nievres.”