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Saturday, April 2, 2011

Du Rififi Chez Les Hommes / Rififi (1955)

Colocado na lista negra de Hollywood, após ser acusado de partilhar ideais comunistas, Jules Dassin rumou até França, para onde transportou um certo estado de espírito niilista e negro, a partir do qual conseguiu dar corpo a uma das maiores obras primas do crime e do heist film, sob uma filosofia e um estilo particulares, o noir. Para além do selo de "inimigo político", o autor não se livrou de várias convulsões de produção, por falta de meios e pelo seu repúdio com o livro original de onde o argumento foi adaptado, que François Truffaut apelidou de "o pior livro de crime que já li", contrapondo, sobre a versão filmada, com "um dos melhores filmes de crime que já vi". De facto, com um argumento incrivelmente inteligente, muito bem construído, cheio de mistério, tensão e marcos emocionais muito fortes; de uma sensibilidade de colocação de câmara e composição que transpõe 120 páginas para as mais sugestivas e deliciosas imagens em movimento; com uma música e uma utilização do som maravilhosas, Dassin cria, aqui, um dos melhores filmes de todos os tempos.

As personagens são construídas de forma magnífica. Tony, acabado de sair da prisão, bebe e joga cartas - um niilista, sem rumo. Os seus amigos, Jo e Mario, precisam dele e querem-no para o próximo golpe, desta vez a uma riquíssima joelharia - mesquinhos criminosos (talvez fossem, numa história mais banal!). Mas existem outros elementos e pequenos subplots, que aprofundam todas as personagens e aperfeiçoam o nosso conhecimento sobre cada uma: a antiga relação entre Tony e Mado, traidora, cujo reavivar da memória confere uma nova dimensão à inutilidade da sua vida, e lhe faz brotar um sentimento de vingança contra o próprio mundo, e o impele a aceitar participar no roubo das jóias - um magoado, um decadente, um grande anti-héroi noir. Já Jo Séldois é um carinhoso e afectuoso pai e esposo, como vemos pelas brincadeiras que tem com o filho e pela forma como conversa com a mulher. Mario é, igualmente, um apaixonado pela sua companheira e brincalhões vão vivendo os dois. E chega César, directamente de Milão, o outsider, que começa por encarnar a competência, a pedra de toque necessária para o golpe.

E assim vamos, ao longo do filme, conhecendo cada vez mais estes quatro homens, nomeadamente no crescendo da colaboração entre si - a sua compenetração, a determinação, a minúcia. Tudo corre como planeado e à face negra de Jo, Mario e César corresponde um amor à vida e à família: o primeiro quer utilizar o dinheiro para com o filho; o segundo, para com a mulher; o terceiro, para com as irmãs. Tony continua a caminhar na sua estrada sem grande destino - "Não sei [o que fazer ao dinheiro].".

A partir daqui, as relações entre os quatro homens são postas à prova, num terceiro acto em que nos debruçamos completamente sobre a personalidade da nossa personagem principal e assistimos a uma das mais belas transformações de sempre, onde vemos nascer um verdadeiro, ainda que tardio, herói. O gatilho para isto é dado por César, aquele que começou desconhecido, que chegou a companheiro (diz Tony, "Eu até gostei de ti"), e que sua luxúria para com Viviane coloca na posição de traidor máximo, ao revelar ao gang de Pierre (actual marido de Mado) a localização do pequeno tesouro. A primeira consequência é o seu aprisionamento; a terceira, o assassínio de Mario e sua mulher; a terceira, o rapto do filho de Jo. Por aqui, reentra o valor do subplot de Stéphanois, que assassina César ("Quebraste a regra [dos companheiros do crime]") e que tem de ultrapassar o seu rancor e mágoa para com a sua amada para evitar a catástrofe total - a perda de todo o dinheiro e a morte do menino e de Jo.

Tudo acaba em doce-amargura, depois da peripécia. O menino é salvo, depois da morte dos gangsters (à excepção de Pierre). Por falha de comunicação, Jo perde a cabeça e avança até à toca do lobo, acabando morto. Imediatamente a seguir, Tony é ferido de morte e ainda consegue acabar com Pierre. O menino chega a casa, a salvo, e a mala de dinheiro cai nas mãos da polícia.


É um filme recheado de subtilezas de argumento e de câmara extraordinários. Pequenas acções descrevem tudo o que foi acima contado e todos os pequenos beats de evolução, todas as motivações e antecipações de todos os subsequentes passos - desde a tensão da meticulosa preparação do assalto, quase sem falas, ao próprio assalto (cerca de 30 minutos de pleno segundo acto, sem quaisquer diálogos, apenas com sons e música, numa das melhores sequências que já vi), à tensão que existe pelos vários elementos que surgem lá fora, durante o assalto (em relação até com a planificação a que fomos assistindo; ou os inesperados polícias desconfiados), ao rigoroso, fluido e constante crescendo de um quase utilitarismo maquinal na direcção de um desespero marginal, emocional e cru.


Há cenas absolutamente memoráveis. O espancamento de Tony a Mado, no início, em que a câmara, envergonhada mas presa à forte personalidade do homem, fica no limite de não assistir a nada, com a imagem do interior do quarto ao fundo, em profundidade. O serão no clube de Pierre, com a dança de Viviane (aqui), com as sombras lá atrás. As montagens-sequência do planeamento, que já referi, e todo o assalto. A morte de César, por Tony, em todo o seu primeiro contacto, até ao impiedoso e magoado disparo, em ponto de vista subjectivo. Há mais, muitas mais.

Perdoem-me por tantas palavras, até porque são demais para que as leiam. Mas a surpresa foi tal, a emoção foi tal, que não poderia deixar de o fazer. E deveria escrever mais, mais e melhor, mas outras questões não mo permitem, pelo menos para já. Não é apenas um dos grandes film-noir de sempre, é um dos melhores filmes de sempre. Agora, tenho pena que Al Pacino esteja a preparar o seu remake para 2012.

Sunday, March 6, 2011

Blade Runner poderá conhecer prequela e sequela


A Alcon Enterteinment está prestes a adquirir os direitos para produzir qualquer número de prequelas e sequelas do grande clássico de ficção científica de Ridley Scott. Esperando sinceramente que tal não aconteça, a verificar-se, arriscam-se nomes: Christopher Nolan (The Dark Knight, Inception) ou Neil Bloomkamp (District 9). Conheçam mais detalhes aqui.

Friday, March 4, 2011

Pulp House

Por problemas técnicos, limito-me a deixar o link (cliquem na imagem). Vale a pena.

Saturday, August 14, 2010

Hiroshima, mon amour / Hiroshima, meu amor (1959)

Passam hoje, dia 14 de Agosto de 2010, 65 anos desde que começou o final de um dos mais bárbaros e desumanos conflitos entre nações - minuciosamente planeado, o ataque nuclear a Hiroshima, no Japão, marcava a ascensão dos Estados Unidos à ribalta da Guerra e deitava por terra um aliado chave, ainda que não formal, da Alemanha nazi.

Mas o histórico acontecimento foi, e ainda hoje é, muito, muito mais do que um marco de viragem da realidade estratégica, militar, económica e geopolítica do Mundo. É, paralelamente, numa dimensão tão mais profunda e sombria, um dos maiores símbolos do poder do Homem para sentir, e, se sente, para sofrer, para viver ou para morrer, para optar pela vida ou pela morte, para amar ou para odiar, para escolher e para gerir uma existência material e espiritual.
Não serve esta introdução de qualquer tomada de posição quanto ao nuclear – se a maldade, e o adjectivo é propositadamente inocente, do bombardeamento foi de uma intrínseca inevitabilidade, também o foi em extrínseca necessidade.
Hiroshima, meu amor, porventura a mais bela obra prima de Resnais, é uma estória de amor e uma história do Homem, ou parte dela. Uma francesa e um japonês estão apaixonados e não sabemos os nomes deles, até ao final. O filme abre com um abraço imerso em sombras, salpicado de água, acompanhado por uma suave e enternecedora música, e é a partir daqui que assistimos a um retrato lindíssimo, poético, suave e subtil das consequências humanas do lançamento da primeira bomba atómica.

Há um paralelismo inicial entre uma Hiroshima parcialmente restaurada e imagens chocantes, aterradoras, quase nojentas, do pós-explosão, pautado por excelentes long-shots e por uma montagem rítmica, que evidencia o contraste entre a simetria da reconstrução e a descoordenação da destruição. O timbre da voz da rapariga e a forma como se dirige não só ao seu homem, mas também a todos nós, confere-lhe um encantador tom documentarista.

O abraço que inicialmente se parece com uma confusão de membros, são afinal o resultado da evidência carnal do amor entre dois seres humanos – a relação, o sentimento. É assim que vivemos, e assim era antes da II Guerra Mundial – era assim que se vivia em França, em Inglaterra ou nos Estados Unidos; era assim que se vivia na Alemanha ou no Japão. É assim, o Homem.

Ao olhar para o seu amante adormecido, a mente da rapariga, por instantes, viaja até uma imagem semelhante, desta feita, de um soldado em sangue, isolado, nos seus braços. Que diferença havia entre estes dois seres humanos e os restantes, que morreram em combate, ou na explosão ? Que diferença havia, na altura da tragédia, na inocente juventude de um francês ou de um japonês ? “O que fazias em Nievres ?”, pergunta-lhe ele, enquanto se olha no espelho – e bem o faz, pois as vivências mais sinceras de um eram reflexos das do outro – o que é isto das classes e das raças ?
Depois de sermos presenteados com imagens sensibilizantes de um filme dentro de um filme (os cartazes da manifestação, que vemos de um ângulo baixo, mas que são filmadas por um ângulo de cima – a omnipresença da indignação), viajamos até ao passado da jovem, algo que nos ocupa quase até ao final da película. Vivia em Nievres, passeava de bicicleta pelos campos, namorava um soldado inimigo (alemão) - a música que nos acompanha é belíssima e torna tudo ainda mais singelo, ainda mais perfeito.

Conta-nos a sua história, como foi viver o seu amor, o que sofreu por ele, o que gritou por ele, o castigo a que foi sujeita pela diferença das nacionalidades (a caverna sombria onde quase enlouqueceu, bebendo o seu próprio sangue e o sal das paredes) e dirige-se ao seu amante japonês como se fosse ele o seu primeiro amor, esse tal amor do seu passado – não será que ficou mesmo louca ? A certa altura conta-nos como a luz voltou, como se restabeleceu, como a classificaram de “razoável”. Como foi que o fez ? Numa palavra, aliás, citando-a: “Esqueci.”.

Por diversas alturas, até este ponto do filme, desde o início, ambos estiveram para se separar – ele para ficar no Japão, ela para voltar a França. Ele sempre insistia para que ela desistisse da viagem, ele sempre hesitava, mas sempre reclamava ir – e depois, sem explicação, sem qualquer interrogação, voltavam sempre a encontrara-se. E tudo se passava num dia apenas, que parecia uma eternidade.

Rebenta uma confusão de sentimentos. O seu grande e passado amor conjuga-se com a recente e até então efémera paixão, com a assimilação dos dois homens. A raiva e a vergonha assoma-a quando se arrepende de ter contado a história do seu amor proibido. A indecisão, o susto, o medo, a necessidade e a vontade envolvem-na quando, uma vez mais, não sabe se deve ficar ou partir – já jurara ambas as acções.

É inevitável. Ou foi. O passado foi bom, foi feliz, mas agora entristece, magoa, corrói. Se há o desejo de lá voltar, esse desejo tem de ser reprimido, porque o passado de que se lembra não pode ser agora marcado apenas pelos momentos bonitos que o constroem, mas pela antídese que são os que se seguem – porque só existe um passado face ao presente – e esses são maus, aflitivos, suicidas. É por isso que esquece, que tem de esquecer, que não consegue deixar de esquecer.
Mas não é a memória que desaparece, não são as imagens ou os sons que se obnubilam, ou como nos teria contado tudo ? É a emoção, é o sentimento de pertença a um mundo estranho, a uma fantasia. “A rapariga de Nievres está morta”, repete. Resta apenas a rapariga que agora vemos.

A bomba caiu, parte da humanidade morreu – não só em quantidade, mas em emoção, em sentimento, tal como o que foi esquecido. Uma transição triste mas necessária de um mundo a muitos de nós não pertenceram, para o único que conhecemos – mas, o mal já estava feito, e somos um pouco mais pobres em humanidade.

Ela fica com ele. Não o contrário. Antes do fade-out, sabemos que o nome da rapariga é Nievres. O dele, é Hiroshima.

Lindo, sublime, mangnífico.

“ – O que significava para ti Hiroshima, em França ?”
“ – O fim da Guerra. Quero dizer, completamente. É incrível que se tenham atrevido a fazê-lo. É espantoso que o tenham conseguido. E também o início de um medo desconhecido, para nós. E depois, a indiferença. E o medo da indiferença, também.”
“ – Onde estavas tu ?”
“ – Tinha acabado de sair de Nievres.”

Wednesday, July 28, 2010

Fellini e a exuberante sátira social: La Dolce Vita (1960) e Satyricon (1969)

Nunca deixam a sátira social ou o retrato autobiográfico de fazer parte das obras de Federico Fellini e foi por isso que, no início desta curta incursão pelo realizador italiano, referi que não seria completamente coerente uma divisão da sua filmografia como a que estava prestes a fazer. Escolhi estas duas obras em especial para tratar a crítica do autor à mundivivência humana pela sua particular beleza visual, pela exuberância das suas mis-en-scene pelo seu flutuar entre a realidade e a fantasia do sonho, pela sua sublimidade da dormência (A Doce Vida) e do conto de fadas (Satyricon). Em ambos: a devassidão do humanismo, a decadência moral.

A Doce Vida é o meu filme favorito do autor, um dos que mais me marcou. Um retrato directo mas subtil, simples mas profundo, realista mas esteticamente belíssimo e fantasioso, da sociedade da altura que, no fundo, é ainda a sociedade em que hoje vivemos - a sociedade contemporânea. Através de uma rápida e por vezes confusa sucessão de dias e noites, acompanhamos Marcello, um homem normal, demasiado normal, algo que faz dele um deambulante terreno e espiritual, deliberadamente procurando por um sentido a dar à sua vida em cada gesto, cada expressão, cada acção, cada conversa, cada nova relação. Não se lhe aponte o dedo por suposto egoísmo com que parece carregar melancolia e aflição da inexistência de propósito para a vida, já que é assim que deixa de ser ele próprio para reencarnar toda a humanidade - não sabemos de onde vimos, nem para onde vamos, nem o que é o universo ou coisa que o valha.
Para escapar a esta aterradora visão do mundo, a este gélido e metálico tubo por onde discorrem os anos que nos levam a navegar pelos mares da vida, Marcello junta-se à classe alta, enverga as suas vestes, segue os seus propósitos, alimenta-se das suas ideias e ambições, divaga pelo seu mundo, tudo sob a capa do jornalismo e da reportagem, acabando por imergir completamente num mundo que, não sendo o seu, como não o era do primeiro Homem, dele não pode sair, como lá estão presos os últimos Homens, que até agora somos nós. E que mundo é esse, pergunta-se. Um mundo decadente, não imoral, porque para isso teria de perdurar o sentido de Dever, mas sim amoral, de uma superficialidade assustadora, cuja reflexão se reduz à luz e ao brilhante dos colares e das pulseiras reluzentes.
Encantadoras vestes, ofuscantes cenários e intensas correrias marcam a pintura e o ritmo do filme, das festas, da futilidade e da devassa da vida privada, da forja dos milagres pela igreja, sob protecção da capa da incapacidade crítica de uma população mecânica. Faiscantes relações, em intensidade e duração, ou não ficássemos nós tão confusos como Marcello, debatendo-se com a sua mulher, algumas prostitutas e com a sua única salvação, a inocente e pura (a única, no filme) Sylvia, com a qual protagoniza a magistral e eterna cena da Fonte de Trevi, mas que acaba por se revelar submissa a um marido autoritário. Nem a família, a riqueza e a poesia nos podem salvar, ou não fosse aquele que as sustentava todas suicidar-se, para desgosto do nosso personagem, que não só o desejava, como o idolatrava.
Na orgia final culmina todo este sentimento e esta mentalidade em que vivemos - o prazer rápido e eficaz, industrial, a luxúria pouco exigente, a bebedeira do intelecto e da existência. Contra isto, apenas surge uma tentativa de troca de palavras com uma pequena rapariga, eventualmente o segundo raio de pureza que surge no filme, tentativa essa que se dilui e espalha pelas emaranhadas redes da já sedimentada incomunicabilidade do homem.

Satyricon, baseado num dos únicos romances conhecidos e recuperados da época do domínio romano, escrito por Gaio Petrónio, é uma uma sátira social e política que se constrói e vai erguendo por meio de degraus ora cómicos, boémios e divertidos, ora tristes, profundos e alarmantes.
Sucedem-se episódios aparentemente descontextualizados, sem uma linha de continuidade, a não ser o pano comum da luta de Encolpius e Ascyltos, dois jovens esbeltos, pelo amor de Giton, um pré-adolescente suave e delicado. O desejo sexual nunca é escondido e acaba depois por fluir para relações com terceiros e entre todos eles, mas o seu retrato, como todo e qualquer retrato ou referência nesta obra, nunca é explícito, cru ou minimamente relevante. Desta vez, a câmara de Fellini preocupa-se não apenas com a imagem mas também com a ideia do sentimento e da emoção. Por entre épicas peripécias e eventos mais ou menos bizarros, inspiração meramente histórica ou fantasiosamente mitológica (a Hermafrodita ou o Minotauro), esbate-se o contraste entre o Deus e o Homem - onde chegou a humanidade, que desafia o Olimpo, sem que a cólera de Júpiter sequer se revele ? Já estarão cansados de nós ? - e acentua-se o contraste entre os Homens - a eterna luta de classes, os banquetes dos ricos na presença dos pobres, a escravatura.
Depois do combate, da loucura, da cáustica luxúria, da bravura, do sucesso e do falhanço, depois da vida e da morte, chega a altura de Encolpius, e nós com ele, partimos para outra Terra, lá longe, que, por não a conhecermos, não nos aquece o intelecto mas nos gatilha a esperança.

Monday, July 19, 2010

Fellini, a representação autobiográfica e o sonho: I Vitelloni (1953), Otto e Mezzo (1963), Amarcord (1973)


Verdade seja dita: não é possível, ou sendo, não é totalmente exacto compartimentar a filmografia do mestre italiano desta forma tão estrita, já que outros filmes de que aqui falarei, como Roma e Satyricon, também muito devem ao animado e colorido sono e à personalidade do director. Esses, porém, tratá-los-ei a propósito de outra temática.

Em Os Inúteis acompanhamos as vidas de cinco jovens adultos cuja participação na sociedade não se pode sequer reduzir a uma busca pela diversão, já que essa mesma é, em si, frustrada, restando-lhes os caminhos pelas estreitas e escuras ruas da deambulação eterna. É assim que começam e é assim que Fellini os trás ao ecrã por várias vezes, em ruas desertas, escuríssimas, cujo negro contrasta com fortes focos de luz vinda dos antigos candeeiros, seguindo sem destino, gargalhando sem piada, reflectindo sem tema. Da mesma forma que os absorvem e envolvem as paredes dos antigos prédios que ladeiam e limitam essas ruelas, também assim a vida lhes vai concedendo poiso - de forma tristemente solitária, com enganadores focos de jubilo. É isto que se volta a sentir no contraste entre o silêncio e a tranquilidade quase assustadora que se sente de cada vez que uma personagem sai à rua e a exuberância, o barulho e a escandalosa euforia de cada festim que acontece.
De todas as personagens, o maior símbolo da vivência sem propósito, da existência sem valores, da decadência moral (ainda assim, um retrato longe de ser perturbantemente nietzschiano) é Fausto, um homem que engravida uma inocente, bela e jovem rapariga (Sandra) e que, ao mesmo tempo que parece viver com ela uma feliz relação de marido e mulher, enquanto procura emprego e durante o tempo em que sustém um, não consegue, por meio algum, resistir à luxúria, à curiosidade mórbida de umas novas pernas de mulher, nem que, para isso, tenha de hipotecar a sua felicidade e a dos outros (dos amigos, do pai, da mulher, do filho).
Para eles, a vida não muda e não mudará nunca. A única excepção é Moraldo, irmão de Sandra, que até aos últimos momentos da película em nada se opõe aos devaneios espirituais e carnais do cunhado, à sua completa indecência para com a o mundo honesto (ajuda-o a roubar o antigo patrão) ou à sua caminhada sem destino à vista. Decide que assim não poderá continuar e acaba por partir numa viagem para um novo começo, para uma nova vida, submetendo-se à triste despedida do seu único amigo interessado pela vida (o pequeno Guido), num brilhante momento de cinema autobiográfico em que, à janela do comboio, se ouve a voz de Fellini discorrendo da boca do personagem, "Ciao, Guido.".

Durante cerca de 30 anos, Federico Fellini registou num pequeno diário todos os sonhos que foi tendo, através de palavras, desenhos, pinturas - aí se encontravam representados, descansando tranquilamente, à espera que lhes dessem vida, todos os seus mais íntimos, bizarros e excêntricos desejos, paixões, medos e terrores. É a partir destas mágicas folhas, que hoje em dia se encontram compiladas na obra "Federico Fellini - The Book of Dreams" (ainda sem tradução portuguesa), que o mestre vai, a partir da década de 60, criar algumas das mais bonitas obras de arte que ainda hoje existem, belas composições e concatenações entre a poesia do cinema, da música, da pintura, da fotografia e da arte plástica.












Em Oito e Meio assistimos a uma incrível explanação e representação do inexplicável e irrepresentável drama da criação artística, enfrentado por qualquer músico, escritor, pintor ou cineasta numa ou em várias alturas da sua vida.
O drama consiste exactamente em não conseguir gerir uma mente cheia de tudo mas inundada num nada agoniante. Uma confusão de pensamentos, reflexões, imagens, ideias, sons, cenários, situações que se emaranham uns nos outros, que logo de seguida tentam seguir o seu caminho individualmente, que voltam atrás antes de começarem a seguir para a frente, que começam a meio e que não acabam no fim.
É precisamente isto que Fellini nos mostra e é exactamente com esta sensação que nos deixa. Acompanhamos Guido (em magistral interpretação de Mastroianni), um realizador de cinema que vive no extasiante mundo do sucesso artístico, mas que, desta vez, não sabe o que fazer. Por entre cenários reluzentes, ricos e espalhafatosos, olhando e conhecendo estranhas personagens, umas verídicas outras nem tanto (incluindo a mulher e o produtor), que lhe esmagam o espírito com a pressão em relação a um novo filme, fantasiando e desejando sobre antigos amores que nunca chegamos a saber se alguma vez teve ou se apenas vem caprichando desde sempre, assistindo a deslizes sobre cordas, rodopios sobre rodas, pernas, braços, sorrisos, cantos, luz, muita luz, tudo é drama, tudo é confuso, tudo é aflitivo e tudo parece significar o fim de uma carreira. É inevitável chegarmos ao ponto em que não sabemos o que se está a passar e o que faz parte do dilema da nossa espiritualmente sofredora personagem, do seu sonho, do seu desorganizado imaginário, para o qual contribui a serena e pautada voz do actor principal, que muitas vezes nos acompanha em tom quase documentarista, um narrador participante, enquanto o som do que se passa no filme baixa subtilmente, levando-nos a mergulhar ainda mais profundamente numa consciência que não é a nossa.
Até à cena final ... em que, subitamente, vários actores, vestidos com estranhos fatos, caminham, correm e dançam, atrás do realizador. Finalmente conseguiu harmozinar a orquestra e está pronto a comandar o barco. Brilhante, um dos maiores filmes que já vi.














Com tradução para "Eu lembro-me", Amarcord é a mais literal das autobiografias do autor. É, uma vez mais, com um argumento aparentemente desconexo, recheado de eventos tanto bizarros quanto cómicos, através de uma atmosfera incrivelmente harmoniosa, luminosa e nostálgica que Fellini nos brinda com as mais estranhas personagens, certamente marcantes na sua infância (o adolescente que mais nos aparece é baseado num amigo de infância), e que o continuam a assombrar nos seus sonhos. Desde um avô que balança entre o velhinho confuso e o folião, um pai autoritário, uma mãe defensora de um filho, uma prostituta louca e ninfomaníaca, um tio doido varrido ("Io vogglio una donna!"), uma peixeira gordíssima, retratada como uma autêntica sedutora, terminando na bela e desejada Gradisca, todas as falas, relações e sentimentos nos aparecem como uma tentativa do autor de nos comunicar algo sobre si e sobre os seus primeiros anos.
Nunca esquece a sátira ao Il Duce ou aos métodos de educação da altura - na escola e em casa. Tudo se passa no espaço de um ano e assistimos à rotação das quatro estações ("When the puffballs come, cold winter's almost gone."). A este retrato da inevitabilidade cósmica, alia-se um esboçar de vários eventos cómicos sem ligação, que não se conseguem encadear logicamente, que não constroem uma estória, exactamente porque a vida é assim - uma sucessão de eventos derivados do destino, do efeito borboleta, da sorte, dos outros, muito mais do que um encadeamento pragmático de opções. E, como todas as vidas, assim foi a vida de Fellini.

Saturday, July 17, 2010

Fellini e a estrada da Vida: La Strada (1954) e Le Notte di Cabiria (1957)

A Estrada da Vida, que dá nome a este artigo e cuja dimensão percorre o pautado desenvolver destas duas estórias, e a As Noites de Cabíria são duas serenas e magníficas obras de transição entre o cinema neorealista de Rossellini, De Sica e Visconti e o sonho, a fantasia e a questionabilidade do real de Fellini e Antonioni (voltarei, noutro artigo, a Os Inúteis). Partindo de uma marcada análise às dificuldades vividas em Itália, no pós II Guerra Mundial, o director concede-nos, nestes dois filmes, um bilhete de embarque em melódicas e visualmente deliciosas jornadas pela simplicidade com que os mais primitivos sentimentos nos conduzem pelo caminho terreno a que estamos destinados, ou simplesmente dispostos a fazer - do amor altruísta e puro ao interesse egoísta e manchado, da esperança ao desespero, da expectativa à frustração, da ingenuidade com que começamos este percurso e da dureza e cepticismo com que temos de o enfrentar. Da vida à morte.



Na primeira das películas, seguimos a viagem da inocente e ingénua Gelsomina, vendida pela sua mãe, por 10.000 liras, a um deambulante, reservado, autoritário e reles artista de circo - Zampano. Sem escolha, ofuscada pelas prometidas maravilhas de uma vida de cidade em cidade, ansiosa por aplausos que preenchessem e aquecessem o coração, deslumbrada pela ideia de se sentir capaz, útil e talentosa, acaba por se apaixonar pelo patrão, caindo na realidade e submetendo-se a uma vida mediana, melancólica e submissa. Dorme ao relento, não é respeitada, não é livre. Não é amada.
A certa altura, depois de tentar fugir, assistimos a uma inesperada compaixão, delicadeza e preocupação de Zampano, quando abandona, percebemos aí, "a sua amada", para o seu bem, deixando-lhe algum dinheiro. A última cena é belíssima e agridoce. Numa praia deserta, escura e húmida, percebemos que toda a relação entre os dois, uma dicotomia entre a paixão e a indiferença, foi toda ela uma mentira - Zampano também amava Gelsomina, agora morta. E por isso sofre, e nós sofremos com ele, como se nos deixássemos cair num poço vazio e escuro que mais não é do que a morte, uma demarcação entre o que foi e o que poderia ter sido.
Visualmente brilhante - límpido, polido, equilibrado entre o luminoso e a sombra escura - e melodicamente sincero e emotivo (em duas palavras, "Nino Rota").

Em As Noites de Cabíria, com mais uma fantástica interpretação chapliniana de Giulieta Massina, enveredamos em mais uma busca pelo amor, pelo carinho, pela relação com o outro e, assim, pelo significado da vida, num constante alternar entre a alegria e a tristeza. Cabíria é uma prostituta de rua, que vive num bairro pobre juntamente com as suas colegas de profissão e que faz renascer a ingenuidade e inocência de Gelsomina. Achincalhada pelo seu optimismo e pela sua constante luta por uma vida melhor, vê-se abandonada por homem mediano que só queria o seu dinheiro e por um actor famoso que nela não via mais do que um capricho de que nunca se chega a servir.
Depois de uma maravilhosa cena de hipnotismo, em que quase viajamos até ao mundo com que a personagem sonha, Cabíria parece encontrar o seu verdadeiro amor. A estória volta a repetir-se e o filme termina quase como começa - a nossa personagem está à beira da água e o seu companheiro mais não quer do que o seu dinheiro.
Uma obra em que a luz acompanha a esperança de um coração, em que a sombra e os cinzentos, ou o mero escurecer, orientam a inevitabilidade do esconderijo, da resignação e da tristeza e em que a música nunca nos deixa voltar ao mundo real, do princípio ao fim.