Wednesday, July 28, 2010

Fellini e a exuberante sátira social: La Dolce Vita (1960) e Satyricon (1969)

Nunca deixam a sátira social ou o retrato autobiográfico de fazer parte das obras de Federico Fellini e foi por isso que, no início desta curta incursão pelo realizador italiano, referi que não seria completamente coerente uma divisão da sua filmografia como a que estava prestes a fazer. Escolhi estas duas obras em especial para tratar a crítica do autor à mundivivência humana pela sua particular beleza visual, pela exuberância das suas mis-en-scene pelo seu flutuar entre a realidade e a fantasia do sonho, pela sua sublimidade da dormência (A Doce Vida) e do conto de fadas (Satyricon). Em ambos: a devassidão do humanismo, a decadência moral.

A Doce Vida é o meu filme favorito do autor, um dos que mais me marcou. Um retrato directo mas subtil, simples mas profundo, realista mas esteticamente belíssimo e fantasioso, da sociedade da altura que, no fundo, é ainda a sociedade em que hoje vivemos - a sociedade contemporânea. Através de uma rápida e por vezes confusa sucessão de dias e noites, acompanhamos Marcello, um homem normal, demasiado normal, algo que faz dele um deambulante terreno e espiritual, deliberadamente procurando por um sentido a dar à sua vida em cada gesto, cada expressão, cada acção, cada conversa, cada nova relação. Não se lhe aponte o dedo por suposto egoísmo com que parece carregar melancolia e aflição da inexistência de propósito para a vida, já que é assim que deixa de ser ele próprio para reencarnar toda a humanidade - não sabemos de onde vimos, nem para onde vamos, nem o que é o universo ou coisa que o valha.
Para escapar a esta aterradora visão do mundo, a este gélido e metálico tubo por onde discorrem os anos que nos levam a navegar pelos mares da vida, Marcello junta-se à classe alta, enverga as suas vestes, segue os seus propósitos, alimenta-se das suas ideias e ambições, divaga pelo seu mundo, tudo sob a capa do jornalismo e da reportagem, acabando por imergir completamente num mundo que, não sendo o seu, como não o era do primeiro Homem, dele não pode sair, como lá estão presos os últimos Homens, que até agora somos nós. E que mundo é esse, pergunta-se. Um mundo decadente, não imoral, porque para isso teria de perdurar o sentido de Dever, mas sim amoral, de uma superficialidade assustadora, cuja reflexão se reduz à luz e ao brilhante dos colares e das pulseiras reluzentes.
Encantadoras vestes, ofuscantes cenários e intensas correrias marcam a pintura e o ritmo do filme, das festas, da futilidade e da devassa da vida privada, da forja dos milagres pela igreja, sob protecção da capa da incapacidade crítica de uma população mecânica. Faiscantes relações, em intensidade e duração, ou não ficássemos nós tão confusos como Marcello, debatendo-se com a sua mulher, algumas prostitutas e com a sua única salvação, a inocente e pura (a única, no filme) Sylvia, com a qual protagoniza a magistral e eterna cena da Fonte de Trevi, mas que acaba por se revelar submissa a um marido autoritário. Nem a família, a riqueza e a poesia nos podem salvar, ou não fosse aquele que as sustentava todas suicidar-se, para desgosto do nosso personagem, que não só o desejava, como o idolatrava.
Na orgia final culmina todo este sentimento e esta mentalidade em que vivemos - o prazer rápido e eficaz, industrial, a luxúria pouco exigente, a bebedeira do intelecto e da existência. Contra isto, apenas surge uma tentativa de troca de palavras com uma pequena rapariga, eventualmente o segundo raio de pureza que surge no filme, tentativa essa que se dilui e espalha pelas emaranhadas redes da já sedimentada incomunicabilidade do homem.

Satyricon, baseado num dos únicos romances conhecidos e recuperados da época do domínio romano, escrito por Gaio Petrónio, é uma uma sátira social e política que se constrói e vai erguendo por meio de degraus ora cómicos, boémios e divertidos, ora tristes, profundos e alarmantes.
Sucedem-se episódios aparentemente descontextualizados, sem uma linha de continuidade, a não ser o pano comum da luta de Encolpius e Ascyltos, dois jovens esbeltos, pelo amor de Giton, um pré-adolescente suave e delicado. O desejo sexual nunca é escondido e acaba depois por fluir para relações com terceiros e entre todos eles, mas o seu retrato, como todo e qualquer retrato ou referência nesta obra, nunca é explícito, cru ou minimamente relevante. Desta vez, a câmara de Fellini preocupa-se não apenas com a imagem mas também com a ideia do sentimento e da emoção. Por entre épicas peripécias e eventos mais ou menos bizarros, inspiração meramente histórica ou fantasiosamente mitológica (a Hermafrodita ou o Minotauro), esbate-se o contraste entre o Deus e o Homem - onde chegou a humanidade, que desafia o Olimpo, sem que a cólera de Júpiter sequer se revele ? Já estarão cansados de nós ? - e acentua-se o contraste entre os Homens - a eterna luta de classes, os banquetes dos ricos na presença dos pobres, a escravatura.
Depois do combate, da loucura, da cáustica luxúria, da bravura, do sucesso e do falhanço, depois da vida e da morte, chega a altura de Encolpius, e nós com ele, partimos para outra Terra, lá longe, que, por não a conhecermos, não nos aquece o intelecto mas nos gatilha a esperança.

2 comments:

  1. Gostei imenso da descrição que tu fizeste do La Dolce Vita. Acho que capturaste muito bem a essência do filme. E sim é dos meus favoritos do Fellini (eu tenho um soft spot pelo 8 1/2, tenho de admitir).

    O Satyricon, é engraçado, que o tenho cá em casa e nunca nele me atrevi a pegar. Tem todo o ar de um filme que eu não vou gostar e depois destruir um pouco a minha opinião do autor (como com Wong War-Kai e "My Blueberry Nights").
    Se aconselhas então darei uma vista de olhos.


    E a seguir ao Fellini, quem é o próximo realizador a ser analisado? Posso sugerir... Cukor? Ou Buñuel?


    E obrigado pelos comentários :)

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  2. Obrigado, Jorge. Sim, aconselho, apesar de, do que tenho lido e ouvido na blogosfera e por amigos, dos filmes mais medi´´aticos do Fellini, este ser o que causa mais aquela situaç~~ao de "hate it or love it".

    Por isso, espero que, se n~~ao gostares, este g´´enio do cinema n~~ao desça na tua consideraç~~ao.

    Quanto ao pr´´oximo realizador: agradeço as sugest~~oes; o pr´´oximo ser´´a Almod´´ovar ou Woody Allen, ainda n~~ao me decidi bem. Dos que sugeriste, certamente que Bu~~nuel estar´´a aqui num futuro pr´´oximo, mais pr´´oximo do que Cukor, por o conhecer melhor.

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