
É através de extraordinárias inovações, como uma das primeiras utilizações intensas do flashback e a criação de uma estória através de uma concatenação dos pontos de vista de vários personagens, que Welles (protagonista e realizador) nos conduz por uma envolvente viagem no tempo, em que perscrutamos a vida de Charles Foster Kane, magnata dos magnatas, influente dos influentes, carente dos carentes. Saber quem foi, o que fez e como fez, imaginar como teria mudado e o porquê de tudo.
Um alarido inicial, suportado por uma antiquada voz radiofónica de um histerismo sereno, dão ao espectador um bilhete de embarque numa viagem quase documental, provocando uma ânsia de saber quem foi então esse homem tão absolutamente grandioso. Esta filosofia fantástico-realista flui pelos testemunhos de várias personagens, que um dia foram uma importante peça na vida de Kane, ajudando a compor um puzzle com demasiadas peças para um homem só.
Com uma fotografia fantástica (a introdução do deep focus) e cenários exuberantes e requintados (a magnanimidade do palácio), tudo é glória e ostentação. Com uma grande prestação do actor principal e diálogos brilhantes, ficamos a conhecer uma personalidade de inigualável carisma, tornando-se difícil não acreditar na quase ridiculamente exagerada influência que um só homem havia tido nos desígnios de um país, como também a criar uma empatia e uma disciplina de apoio ao ex-futuro candidato a Presidente dos EUA.
Por entre toda esta perfeição de vida, querendo ser adorado por todos, controlando as emoções de multidões e multidões (v.g. a forja de críticas positivas às prestações da sua mulher, na Ópera), Charles vive totalmente sozinho e isolado, sem o saber, no seu "eu", na sua consciência, de si para consigo próprio. Afectado pela crise económica e envolvido em escândalos amorosos que começam por arruinar algumas das suas perspectivas profissionais e pessoais futuras, toda a adoração populista que um dia o envolvera começa a desmoronar-se, revelando a superficialidade com que foi amado e de cuja profundidade nunca duvidou.

O seu dinheiro não mais comprava um povo. A sua segunda mulher acabaria por o deixar, partindo em liberdade, fugindo da confusão que Kane não consegue evitar até aí e até ao últimos segundos da sua morte, entre a realização material, e um apoio das massas histéricas mas instáveis, e a realização emocional e espiritual, e um apoio de um grupo modesto mas de sentimento sincero.

A partir daqui, toda a ostentação do palácio dá lugar a uma vastidão negra, assustadora, vazia e melancólica e a Charles nada mais resta do que enlouquecer e morrer como, no fundo, sempre viveu: sem ninguém. No seu último fôlego, pronuncia a misteriosa palavra "Rosebud", que, aliás, é o que motiva a pesquisa jornalística. Acabamos por nos aperceber que era o nome do trenó em que tanto gostava de brincar enquanto criança, ainda antes de ser contaminado pelo vício do dinheiro e da ganância
É com certa angústia e complacência para com a personagem de Charles que me parece inevitável uma reflexão sobre a futilidade do materialismo e do populismo que acabará sempre por perder um combate contra a emoção, ou não fossem os sentimentos os verdadeiros e últimos móbeis do homem.