Showing posts with label Os Melhores das Décadas (2000). Show all posts
Showing posts with label Os Melhores das Décadas (2000). Show all posts

Sunday, September 19, 2010

Os melhores das décadas, 2000: In the mood for love


Mergulhamos na claustrofobia de dois pequenos apartamentos contíguos, num prédio compacto e antigo, povoado por velhos e simpáticos inquilinos, sentimos a melancolia dos vários tons quentes mas por vezes tristemente esverdeados ou azulados, saturados, minuciosa e sinceramente bem arranjados e compostos, assistimos à deambulação simultânea de Chow e Su e concluímos que ficámos a conhecer uma das mais bem construídas estórias da amor do cinema contemporâneo.
O argumento conta a forma como um homem e uma mulher se entrelaçam num amor proibido, por verem um no outro um escape das suas relações conjugais frustradas, já que cada um dos respectivos parceiros mantinham relações com terceiros. Mas que não pareça banal esta introdução do relato amoroso que ficamos a conhecer, porque Kar-Wai consegue construir com uma humildade, uma verosimilhança, e uma profundidade impressionantes o evoluir desta comunhão, que começa numa farsa simbiótica, em que cada um pseudo-vê no outro o seu companheiro legal, e que termina num amor nunca físico, perdido, passado. Platónico.

Somos, por diversas vezes, esmagados e prensados pelas paredes dos cenários estreitos (o apartamento, as escadas, os locais de trabalho, as ruas), ficamos deprimidos por toda a manifestação meteorológica a que assistimos ser a chuva torrencial, damos várias vezes de caras com um close shot de um relógio, que nos lembra que também o tempo é personagem principal, somos confundidos por composições de espelhos que nos dão três e quatro vezes a mesma personagem, estamos quase sempre a participar a partir de uma perspectiva voyeurista, ora pertíssimo de um simples pousar de um cigarro, ora de debaixo de uma cama, ora a partir de uma cortina.



Os cortes que noutro filme poderiam ser injustificáveis, ou simplesmente desnecessários, juntam-se aos ângulos arrojados (constantes violações e variações da violação do princípio dos 180º graus) e às imagens com frames a menos, para nos hipnotizarem numa manipulação temporal, dissociando a vivência triste das personagens, em que os segundos e os minutos se arrastam pesadamente, da nossa vivência ao assistir a película, que segue o seu rumo normal e, por isso, nos causa aflição em relação a eles.

Porém, Disponível para amar conhece os seus mais tocantes fulgores de beldade na repetitiva câmara lenta, sempre acompanhada por uma brilhante banda sonora, que por diversas vezes transforma pequenos gestos, pequenos caminhos, insignificantes acções, em marcos nostálgicos e ao mesmo tempo esperançosos, tristes e ao mesmo tempo inspiradores, sérios e ao mesmo tempo irónicos. No final, o tempo passou e o passado que Chow e Su sempre quiseram viver está agora corroído, e se não o alcançaram na altura, se não o aproveitaram em tempos, não mais terão oportunidade, pois as ruínas são o que nos avassala, encobre, e são tão belas nesse seu esgar destrutivo.

Ou haverá sempre lugar a um sopro de vida ?

Saturday, September 11, 2010

Os melhores das décadas, 2000: Gladiator


Não me importo rigorosamente nada com vozes que bramem com a mais mortífera convicção de que Gladiador não passa de um aglomerado de texto previsível, fantasia e pseudo-comoção hollywoodesca, produzida, mecanicamente, em massa. Aliás, não concordo com isso. Não o classifico sequer como guilty pleasure, porque esses são aqueles filmes provavelmente maus, nomeadamente para a visão da generalidade da crítica, e dos quais gostamos sem saber bem porquê. Deste eu gosto, gosto muito, e sei bem porquê.
A fiabilidade histórica pura e simplesmente não existe, algo que não vejo como um erro de percurso, como uma desgraçada falta de preparação ou uma tentativa barata de ganhar uns trocos. O que Ridley Scott aqui faz é, partindo de outro épico, "Spartacus" (dir., Kubrick), criar uma estória com estrutura e conteúdo quase matematicamente clássicos, elevados a uma emotividade e magnanimidade envolventes e inspiradoras para os sentidos, mais do que para o intelecto. Maximus é, no fundo, um héroi literal, oposto a um anti-herói literal (os heróis não se fazem a eles; fá-los o povo, e, aqui, as pessoas do Coliseu falam por si), com objectivos e conflitos claríssimos e temporalmente distanciados de forma minuciosa, de uma calculabilidade de argumento tão evidente que, por paradoxal que seja, não consegue deixar de me envolver. É a genuína estória do bom contra o mau, contada com o recurso a uma civilização e cultura belíssimas, a uma fotografia muito bonita e a uma banda sonora incrivelmente bem conseguida, tornando não só aceitável como também necessárias as referências à afterlife.

Saturday, September 4, 2010

Os melhores das décadas, 2000: Memento

É sem deslumbrar visualmente, sem uma fotografia ou uma câmara especialmente boas, que, sem pensar duas vezes, classifico Memento como um dos melhores filmes do ano 2000 e, como tal, da década. Uma original thriller de vingança, contado através de uma das mais brilhantes estruturas narrativas que alguma vez alicerçaram um filme, combinando uma explanação dos acontecimentos de forma cronologicamente inversa com uma outra, a preto e branco, cronológica, simplesmente. No entanto, não se entenda que se trata de um virtuosismo meramente formal, já que a mestria com que Nolan alia o seu guião às propriedades da montagem cria um claustrofóbico e misterioso cerco neuro-psicológico, que nos envolve a nós próprios numa intensa e contínua junção de peças e decifração de eventos, momentos, acções. Magnífico relato por entre as complexidades da memória, que não desafia apenas as personagens, mas também o espectador.

Tuesday, August 31, 2010

Os melhores das décadas, 2000: Requiem for a Dream


A Vida não é um Sonho não só é, para mim, um dos melhores deste ano e desta década, como é também um dos melhores de sempre. O argumento não é uma tentativa escandalosa de comercializar uma visão ética e política das vivências, mas sim um credível retrato de profundos problemas existenciais da nossa sociedade, resultantes de todo e cada aspecto distópico em que vivemos, que são os vícios que nos corroem de fora para dentro e de dentro para fora, queimando-nos física, psicológica e socialmente. Isto resulta de uma concepção rigorosa da evolução da estória que seguimos, ou mais especificamente, de uma preocupação humana e artística em produzir uma coerente, emotiva e alarmante evolução dos estados presentes das várias personagens que seguimos - quatro toxicodependentes.


A concepção visual podia ou não fazer jus a este grande trabalho escrito, e Aronofsky acabou mesmo por conseguir aqui um majestoso estímulo visual, transmitindo a sua mensagem da forma mais intuitiva possível, quer provocando uma interpretação do intelecto, quer provocando uma reacção dos sentidos. Numa atmosfera negra, não das trevas, mas do escuro da incerteza do propósito, do prazer de viver, há os split screen estabelecedores de dicotomia, stress e simultaneidade/confusão, há os aceleradamente rítmicos close shots dos segundos chave da rendição aos narcóticos, há repetição de motivos, distorções e cores, há uma progressiva transformação da realidade em sonho (nomeadamente na mãe), há uma câmara tão drogada como o sangue das personagens, ora rápida e rotativa, ora estática e sonolenta. Ou seja, o rigor do argumento é justamente complementado pela minuciosidade dos planos e da montagem.


A cena final é o perfeito contrário de uma epifania. Uma sucessão e contínua re-sucessão perturbadora de sequências de perversão sexual, doença, loucura e prisão, até atingirmos um ponto aflitivamente intenso das repugnantes consequências da droga, ao que se segue o mais duro de tudo isso: a continuação da vida, depois de perdas profundas - a perda de um braço, a perda da liberdade, a perda da mente, a perda da dignidade. Mais do que tudo, a perda das relações e a perda de nós próprios.

Thursday, August 26, 2010

Os melhores das décadas, 2000: Dancer in the Dark

Adorado por muitos, odiado por tantos outros, dicotomia que nada mais faz do que evidenciar que tudo se passou dentro da normalidade, neste trabalho de Lars von Trier, que acabou por vencer a Palma de Ouro, no festival de Cannes. Por mim, não deixou de ser um dos melhores do ano e, como tal, dos melhores da década.

Dancer in the Dark é uma estória de sofrimento e sacrifício pessoal, na esfera da maternidade e do sonho/ambição, aqui retratada de forma peculiarmente paradoxal, pois todo o melodrama, intenso e emocional, é filmado de forma rotineira, pouco preocupada, com uma arrogância própria face aos dilemas da vida. É isto assim graças ao falso cumprimento do famoso Dogma 95, que, se já não havia sido respeitado à risca em "Os Idiotas", muito menos o foi aqui - desta vez, existem cenas de violência, trabalho de luminosidade, música não-diegética, efeitos em computador e câmara estática.
Por entre uma câmara instável, aparentemente amadora, com pouca saturação, através de uma tentativa de reduzir os efeitos pós-produção ao mínimo, assistimos à magistral performance da cantora islandesa Björk, uma mãe pobre e cega, que luta para se sustentar a si e ao filho, procurando juntar dinheiro para lhe pagar uma operação aos olhos, que o resgate do destino que ela já arduamente trilha, e que enternecedoramente mantém acesa a chama de um dia vir a ser uma estrela de um musical.



Sucedem-se os acontecimentos dramáticos que acabam por destruir a vida de Selma, acompanhados por momentos musicais belíssimos (não de uma forma complexa, gloriosa e musicalmente épica, mas sim de forma simples e passageira), em que as cores gastas dão lugar a uma luminosidade extra e em que a câmara finalmente estabiliza por uns segundos, produzindo-se, desta forma, um acumular de tensão sofrível, efemeramente amparado pela resistência da esperança e da ingenuidade da personagem principal, e, sendo a emoção despertada me nós, espectadores, amparado também pela nossa própria piedade. No entanto, o crescendo sente-se, e não sendo aflitivo, não deixa de ser perceptível, culminando numa última cena aterradora, comovente e gritante, que opõe a melodia da vida e do triunfo do amor ao vácuo do silêncio mórbido e repentino.

Ainda assim, não é o meu favorito do autor.