Saturday, August 14, 2010

Hiroshima, mon amour / Hiroshima, meu amor (1959)

Passam hoje, dia 14 de Agosto de 2010, 65 anos desde que começou o final de um dos mais bárbaros e desumanos conflitos entre nações - minuciosamente planeado, o ataque nuclear a Hiroshima, no Japão, marcava a ascensão dos Estados Unidos à ribalta da Guerra e deitava por terra um aliado chave, ainda que não formal, da Alemanha nazi.

Mas o histórico acontecimento foi, e ainda hoje é, muito, muito mais do que um marco de viragem da realidade estratégica, militar, económica e geopolítica do Mundo. É, paralelamente, numa dimensão tão mais profunda e sombria, um dos maiores símbolos do poder do Homem para sentir, e, se sente, para sofrer, para viver ou para morrer, para optar pela vida ou pela morte, para amar ou para odiar, para escolher e para gerir uma existência material e espiritual.
Não serve esta introdução de qualquer tomada de posição quanto ao nuclear – se a maldade, e o adjectivo é propositadamente inocente, do bombardeamento foi de uma intrínseca inevitabilidade, também o foi em extrínseca necessidade.
Hiroshima, meu amor, porventura a mais bela obra prima de Resnais, é uma estória de amor e uma história do Homem, ou parte dela. Uma francesa e um japonês estão apaixonados e não sabemos os nomes deles, até ao final. O filme abre com um abraço imerso em sombras, salpicado de água, acompanhado por uma suave e enternecedora música, e é a partir daqui que assistimos a um retrato lindíssimo, poético, suave e subtil das consequências humanas do lançamento da primeira bomba atómica.

Há um paralelismo inicial entre uma Hiroshima parcialmente restaurada e imagens chocantes, aterradoras, quase nojentas, do pós-explosão, pautado por excelentes long-shots e por uma montagem rítmica, que evidencia o contraste entre a simetria da reconstrução e a descoordenação da destruição. O timbre da voz da rapariga e a forma como se dirige não só ao seu homem, mas também a todos nós, confere-lhe um encantador tom documentarista.

O abraço que inicialmente se parece com uma confusão de membros, são afinal o resultado da evidência carnal do amor entre dois seres humanos – a relação, o sentimento. É assim que vivemos, e assim era antes da II Guerra Mundial – era assim que se vivia em França, em Inglaterra ou nos Estados Unidos; era assim que se vivia na Alemanha ou no Japão. É assim, o Homem.

Ao olhar para o seu amante adormecido, a mente da rapariga, por instantes, viaja até uma imagem semelhante, desta feita, de um soldado em sangue, isolado, nos seus braços. Que diferença havia entre estes dois seres humanos e os restantes, que morreram em combate, ou na explosão ? Que diferença havia, na altura da tragédia, na inocente juventude de um francês ou de um japonês ? “O que fazias em Nievres ?”, pergunta-lhe ele, enquanto se olha no espelho – e bem o faz, pois as vivências mais sinceras de um eram reflexos das do outro – o que é isto das classes e das raças ?
Depois de sermos presenteados com imagens sensibilizantes de um filme dentro de um filme (os cartazes da manifestação, que vemos de um ângulo baixo, mas que são filmadas por um ângulo de cima – a omnipresença da indignação), viajamos até ao passado da jovem, algo que nos ocupa quase até ao final da película. Vivia em Nievres, passeava de bicicleta pelos campos, namorava um soldado inimigo (alemão) - a música que nos acompanha é belíssima e torna tudo ainda mais singelo, ainda mais perfeito.

Conta-nos a sua história, como foi viver o seu amor, o que sofreu por ele, o que gritou por ele, o castigo a que foi sujeita pela diferença das nacionalidades (a caverna sombria onde quase enlouqueceu, bebendo o seu próprio sangue e o sal das paredes) e dirige-se ao seu amante japonês como se fosse ele o seu primeiro amor, esse tal amor do seu passado – não será que ficou mesmo louca ? A certa altura conta-nos como a luz voltou, como se restabeleceu, como a classificaram de “razoável”. Como foi que o fez ? Numa palavra, aliás, citando-a: “Esqueci.”.

Por diversas alturas, até este ponto do filme, desde o início, ambos estiveram para se separar – ele para ficar no Japão, ela para voltar a França. Ele sempre insistia para que ela desistisse da viagem, ele sempre hesitava, mas sempre reclamava ir – e depois, sem explicação, sem qualquer interrogação, voltavam sempre a encontrara-se. E tudo se passava num dia apenas, que parecia uma eternidade.

Rebenta uma confusão de sentimentos. O seu grande e passado amor conjuga-se com a recente e até então efémera paixão, com a assimilação dos dois homens. A raiva e a vergonha assoma-a quando se arrepende de ter contado a história do seu amor proibido. A indecisão, o susto, o medo, a necessidade e a vontade envolvem-na quando, uma vez mais, não sabe se deve ficar ou partir – já jurara ambas as acções.

É inevitável. Ou foi. O passado foi bom, foi feliz, mas agora entristece, magoa, corrói. Se há o desejo de lá voltar, esse desejo tem de ser reprimido, porque o passado de que se lembra não pode ser agora marcado apenas pelos momentos bonitos que o constroem, mas pela antídese que são os que se seguem – porque só existe um passado face ao presente – e esses são maus, aflitivos, suicidas. É por isso que esquece, que tem de esquecer, que não consegue deixar de esquecer.
Mas não é a memória que desaparece, não são as imagens ou os sons que se obnubilam, ou como nos teria contado tudo ? É a emoção, é o sentimento de pertença a um mundo estranho, a uma fantasia. “A rapariga de Nievres está morta”, repete. Resta apenas a rapariga que agora vemos.

A bomba caiu, parte da humanidade morreu – não só em quantidade, mas em emoção, em sentimento, tal como o que foi esquecido. Uma transição triste mas necessária de um mundo a muitos de nós não pertenceram, para o único que conhecemos – mas, o mal já estava feito, e somos um pouco mais pobres em humanidade.

Ela fica com ele. Não o contrário. Antes do fade-out, sabemos que o nome da rapariga é Nievres. O dele, é Hiroshima.

Lindo, sublime, mangnífico.

“ – O que significava para ti Hiroshima, em França ?”
“ – O fim da Guerra. Quero dizer, completamente. É incrível que se tenham atrevido a fazê-lo. É espantoso que o tenham conseguido. E também o início de um medo desconhecido, para nós. E depois, a indiferença. E o medo da indiferença, também.”
“ – Onde estavas tu ?”
“ – Tinha acabado de sair de Nievres.”

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