No estrangeiro, com homens e mulheres estrangeiras, através de línguas estrangeiras, eis que nos chega um Kiarostami a princípio completamente desconhecido. Desbota o castanho da terra e da pobreza iraniana e surgem os sóbrios tons da Itália rural; caem os actores amadores e caracterizadores de um povo e surgem dois gigantes profissionais da interpretação; desvanece o sibilar farsi e ergue-se o dialecto europeu - francês, italiano e inglês. Do Oriente em recurso para o Ocidente arranjado.
Mas era tudo isto que o realizador iraniano queria e tudo isso confessou na masterclass que se seguiu ao visionamento desta magnífica obra - deixa de parecer outro: voltamos a encontrar-nos com ele durante cem minutos de profunda análise do comportamento humano e da vida e é aí que nos vai falando sobre tanta coisa que nos une enquanto Homens, que faz da nossa Humanidade algo superior à nossa tradição ou nação, que nos liga através de elos mais profundos do que a herança cultural que vamos acoplando e desenvolvendo.
Copie Conforme prima, pois, por um argumento magistral. Simplicíssimo no seu conteúdo efémero e directo mas inalcançável na sua multiplicidade e profundidade de reflexões. A cópia que cada um de nós constitui, a partir das mais diversas influências, será tão definitiva como o seu ponto de partida ? Todos nós somos conjugações de pedaços de tudo. Até que ponto é a nossa autenticidade condicionada pelas nossas raízes (culturais, políticas, interpreto eu), e não tão somente pela nossa humilde condição de partilha de espírito e sentimento humano ?
Mas, no fundo, não conseguimos nunca fugir à nossa condição de cópia, ao nosso eterno destino mimético e é também isso que faz de nós parte em cada outro. A relação que nos trazem William Shimell e Juliette Binoche (provavelmente o seu melhor papel de sempre, que, a meu ver, a afirma claramente como uma das melhores actrizes de todos os tempos) é a relação entre um homem e uma mulher desconhecidos que encarnam, consciente ou inconscientemente, a representação de todos os problemas de um casal contemporâneo, mas que transbordam muito para além do conteúdo do acordo nupcial - são as preocupações existenciais da nossa sociedade - a atenção para com o outro, a solidão, a incomunicabilidade, a mecanização da actividade laboral, a frieza do sentimento.
E quem seria o génio capaz de nos transmitir (digo eu, que esta foi meramente a minha interpretação) tudo isto através do constante recurso ao humor ? Um humor refinado, inteligente, ponderado, delicioso.
A masterclass foi, também ela, uma fantástica experiência. Abbas Kiarostami é um verdadeiro mestre da arte do cinema e da arte da vida. Aos 70 anos, é tanta a experiência que tem para nos revelar e foi com tremenda e avassaladora humanidade que respondeu a uma hora e meia de questões, mais ou menos filosóficas, mais ou menos metafísicas, mais ou menos sociológicas, sempre com palavras certas para tudo, sempre com um discurso ponderado e sapiente, que apenas serviu para cimentar a minha admiração pelo seu magistério.
No final, é com orgulho de uma criança com um autógrafo do jogador de futebol que mostro isto:
É ou não é belíssimo? Um jogo de espelhos fantástico, brilhante, cheio de referências a antigas obras de Abbas Kiarostami. E a Binoche nunca esteve tão bela como aqui...
ReplyDeleteÉ tudo isso. Quanto às referências, dá-me algum tempo para conhecer melhor a sua obra e depois rever. Quanto a Binoche, indiscutível.
ReplyDeleteÉ fantástico como o Copie Conforme não tem nada, mas, ao mesmo tempo, tem tudo a ver com a obra de Kiarostami. Sai todo o universo "temático" relacionado ao Irã, saem os dispositivos minimalistas, mas mantêm-se alguns leitmotifs (o diálogo dentro do carro, por exemplo) e, sobretudo, emerge nele uma dramaturgia que ainda trabalha com um certo devir de não-atores (o Shimell não é propriamente um ator, é um barítono de ópera, estreando no cinema), o que acaba (digo eu) por dar outra potência à super-experiente Binoche, que, além de ter aí possivelmente seu melhor papel (premiado em Cannes), está mais linda do que nunca. Ao mesmo tempo, trabalhando o tempo todo na chave da ambiguidade (nas intenções dos personagens, mas também na forma como os filma), obriga-nos a um contínuo deslocamento do olhar, recolocando, em diversas camadas de sentido, a identidade como "cópia" em eterna construção... Realmente fenomenal!
ReplyDeleteAbraços brasileiros desta amiga do teu tio Jorge Louraço :)
RENATA, muito obrigado por tão construtivo comentário e sê bem-vinda ao A Gente Não Vê ;)
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