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Friday, May 6, 2011

IndieLisboa'11: Carlos (2010) (dia 1)

Carlos, de Olivier Assayas, foi o filme que escolhi para começar a edição deste ano do festival e tenho sérias dúvidas de que outra opção pudesse ter sido tão boa. Esta é a história (biográfica, na verdade) de Ilich Ramírez Sánchez, de nome de código "Carlos", um venezuelano revolucionário que, em plena guerra fria, se junta à causa palestiniana pelos conspurcados trilhos do Médio Oriente.

Com a sua câmara oscilante, o realizador traz-nos a fragilidade das relações do seio das teias do terrorismo (a instabilidade é constante, a anarquia tem aí os seus embriões, na completa ausência da força da institucionalidade) e ainda assim regista o seu dinamismo e agilidade, quer seja no planeamento de inteligentes operações, quer seja no aguçado tráfico de armas.

Assayas construiu um guião muito coeso, consistente e bem estruturado, capaz de agarrar o espectador durante as quase três horas, servindo-se da personagem principal, muito bem interpretada por Édgar Ramírez, para ir levando o filme para a frente, enfatizando a psicologia, a paixão da revolução e os marcos históricos, mais do que um plot surpreendente ou de grande destreza (afinal, a História já foi escrita). Passa por cenas incríveis, como a comunhão entre a tensão sexual e a "líbido do armamento", com Carlos e a namorada (e as devidas inserções do elemento "forma física", ao longo da película), os assassinatos dos três polícias, tão bem duziado pelos tons e melodias latinos de relief num belo jogo de tensão, ou mesmo a sequência do sequestro da cimeira da OPEP.

É com um ritmo rápido e bem marcado (até formalmente, pelos elucidativos dissolve) que vamos escalando desde o início dos anos 70 até ao à segunda metade dos anos 90, naquilo que foi uma das coisas que mais me surpreendeu. Parece-me muito difícil conseguir construir uma narrativa, no pouco tempo que pode ter um filme, por tantos anos, com tantos momentos importantes em vários deles - algo muito diferente, por exemplo, da famosa montage-sequence de Raging Bull. Porém, se no geral isso bem me encantou senti que os últimos 45 minutos, em que o próprio Carlos já reconhece o seu destino, entramos numa corrente ligeiramente repetitiva e, por vezes, arrastada, tirando ao final do filme a pujança que chegou a criar e que merecia, de facto.

Tudo vai combinando para nos irmos embrenhando cada vez mais nas teias do tráfico de influências, da corrupção, da negociação, da diplomacia, de todo um espectro de relações entre alguns dos mais poderosos países do Médio Oriente (Iraque, com Sadam; Líbia, com Khadafi; Sudão, Arábia Saudita, Argélia, Israel), nas constantes e bruscas mudanças da conjuntura (como as que ditou o fim da Guerra Fria, a "derrota do comunismo"), na vida e obra de um homem que quis ser um Che, e que terminou os seus últimos tempos em liberdade como um resignado, fugitivo e gordo. Toda a atmosfera e elementos narrativos apontam para isso mesmo, ao conceder uma hora de filme a um Carlos fisicamente muçulmano (um belo pormenor, na gradual transformação do bigode e do cabelo), esquecido de uma luta de verdade, vivendo sob a asa de protecções efémeras, de família destruída e com ingénua nova tentativa, doente.

Thursday, April 7, 2011

There Will Be Blood / Haverá Sangue (2007)


Há filmes que, de cada vez que os vemos, nos extasiam ainda mais do que da última vez, numa cada vez mais profunda percepção de toda a sua conjugação de imagens, sons e narrativa. Ontem à noite cheguei da Cinemateca, depois de mais uma visualização de Haverá Sangue, a segunda em ecrã de cinema, e, desde então, não consigo pensar noutra coisa. Haverá obra mais magnífica que esta ? Muito poucas, as equiparáveis.

O primeiro acto (acredito que é constituído por quatro) é o melhor setup de sempre. Da escuridão mineira e carbónica em que vemos Daniel pela primeira vez (que vai contrastar com a incendiária luz do sol), a batalhar com uma simples picareta contra a rocha inamovível, passamos por uma panorâmica vertical que liga, através do mais genuíno poder da imagem em movimento, com suspense e uma fotografia indescritível, a sua grave lesão à solução que tem para a ultrapassar - atravessar o deserto e as montanhas.

Em todos os domínios, em poucos minutos, sem qualquer diálogo, estão introduzidas todas as filosofias que vão enformar o filme. Tecnicamente, é a câmara fluída, participante, maquiavelicamente reveladora, misteriosa e tensa; é a cor, nos contrastes e no absoluto, com os tons maioritariamente quentes e desérticos e com as sombras e um negrume de arrepiar a alma (é em articulação com uma composição perfeita que vai deixar que haja planos que são autênticos quadros); é o som, milimétrico e rigoroso, que potencia em sinestesia a textura da imagem; é a música, gélida, cortante, que vai ser outra das faces do conflito e da personagem principal. Narrativamente, é na subtileza dos elementos, das acções, da composição e das expressões que se baseia o argumento (não obstante os diálogos inigualáveis). Tematicamente, é na clareza com que nos é apresentada aquela que talvez seja a mais ambiciosa e mais bem sucedida personagem que o cinema já conheceu.

Seguimos por um clássico encadeado entre a assinatura, por si só esmagadora, de Daniel Plainview, e as construções que já lhe pertencem (as suas mãos sujas de carvão; os esboços das máquinas). Rapidamente, descobre petróleo e é num plano magnífico que o seu louco regozijo nos é dado a conhecer - a palma da mão mergulhada no líquido e erguida para os céus. Está introduzida mais uma peça do conflito: a ambição de um homem do petróleo. O engendrar das máquinas, nos rigorosos grandes planos, com o som a transportar-nos directamente para o local, criam uma atmosfera de mecanização quase assustadora, até que sucumbe e resulta no acidente de um trabalhador (num plano que capta na perfeição a violência do embate, muito semelhante aquele em que Daniel cai, logo no início). Aliás, é precisamente aqui, numa mera fracção de segundo, que o sangue do homem se espalha pelo ar, como pó. A seguir, vemos mais um plano avassalador, um grande plano de Plainview, coberto de petróleo e sangue escuro. Nestes dois, eis que, pela primeira vez, o sangue se mescla com o combustível, aqui retratado com uma fidelidade impressionante, com uma textura mesmo viscosa. Se o título parecia adquirir, já aqui, um significado de grande abrangência, ainda mais quando o filho do homem é adoptado por Daniel (bebé que já tinha sido baptizado com uma marca do líquido), que o passará a acompanhar para sempre - o sangue, agora, representa também a família e está, finalmente, introduzido o drama da obra: um ganancioso que balança entre a sua ambição desmesurada pelo sucesso e dinheiro do petróleo e entre certos valores familiares.

A partir daqui, o negócio do nosso personagem floresce e leva-o de discurso em discurso, de cidade em cidade, de terrenos em terrenos, de população em população, Califórnia fora, procurando expandir o seu império. Nove anos passam, numa elipse muito bem conseguida, e Daniel compra uns terrenos em Little Boston, o espaço de todo o resto da acção. Também aqui faz o seu magnífico discurso, em que o subtexto nos revela tanto, tanto: por um lado, a eloquência com que fala do seu trabalho (oil man); por outro, o orgulho com que fala de seu filho e da importância que confere à família (family man), prometendo a construção de toda uma série de infra-estruturas, para aumentar a qualidade de vida da população. Uma vez mais, o conflito entre petróleo e família. Porém, note-se a subtileza dos planos aqui utilizados, a salientar o individualismo de um homem sem limites: começamos num plano aproximado de Daniel; passamos para um plano que nos revela os presentes; terminamos num plano afastado, em que vemos Daniel, o filho (H.W.) e algumas pessoas, seguimos em steadycam até vermos apenas os dois, com incidência no segundo, mas rapidamente reenquadramos para o magnata, voltando a aproximar-nos, terminando como no início. O seu olhar e a sua voz são arrepiantes.

Já a vila trabalha com gosto e vigor e o poço prepara-se para ser inaugurado. Eli, um pastor da Igreja da Terceira Revelação, um homem manipulador, sedento de poder e atenções, vê as suas intenções imediatamente identificadas por Daniel, ao pedir-lhe para que este lhe conceda um papel de destaque na tal inauguração (a parte final da missa, e toda a conversa final, acontece num só plano-sequência, de intensidade dramática magistral, em que se sente realmente um confronto de titãs). Daniel finge aceder, despedindo-se com "That was a goddam hell of a show!", referindo-se à sua "expulsão" de um demónio. O que vai terminar o primeiro acto, é a inauguração do poço pelo seu filho e pela sua pequena amiga, Maya, com um discurso altamente provocador e confiante, de Daniel, em relação a Eli - mais uma escalada no conflito, ao surgir a oposição de um homem que se atravessa na sua esfera de domínio social e económico, graças ao petróleo, sempre balançado pelo espírito familiar (quem ele escolhe para a inauguração).


Segue o segundo acto num crescendo de tensão que vai culminar no ponto de instigação da instabilidade deste homem. Caríssimos, esta sequência deixa-me de tal forma sem palavras que apenas conseguirei apontar algumas referências. A alternância entre a claridade do bonito dia e o abafado e a escuridão do fumo negro, o jorro do petróleo, imponente e incontrolável, as chamas que o envolvem e que nos deixam a contemplar o fogo, tal e qual como faz Plainview, pela sua beleza e não pela destruição que cria (ou pormenores como o plano desordenado e inclinado, quando Daniel sobe para ir buscar o filho). É aqui que H.W. fica surdo (e conectamo-nos com ele por várias vezes, ao som de Arvo Part) e é a partir daqui que o seu pai começa a perder o controlo. Tudo é criado criado de forma incrivelmente subtil e terminamos com três beats magistralmente elucidativos: 1) o fogo parece ter tido mais para aproveitar do que para lamentar, no que toca à exploração de recursos; 2) o enternecedor plano em que pai e filho dormem, abraçados, imundos de negrume (repare-se, com estes dois pontos, de novo e como sempre, petróleo e família); e 3) um insert de um grande plano de Eli, com as chamas a reflectirem-lhe no rosto, garantindo que não só a família (surdez) mas também os negócios terão uma fase mais dura.

Entramos no pedaço mais intenso do filme, a meu ver - o terceiro acto. Enquanto se debate com a negação do problema de H.W., Daniel é abordado pelos imperialistas da Standard Oil, que se propõe a comprar-lhe todas as propriedades por uma soma avultada, que acabam por cometer o erro de lhe sugerir a doença do filho, despoletando-lhe uma imensa raiva (novamente, petróleo e família)."You don't tell me how to run my family" está, assim, para a tensão que se sente entre ele e o que resolverá para o seu pequeno e, em claro subtexto, para a sua própria empresa - que não desafiem nem a sua família nem a sua ambição e prospecção de sucesso. Esta atitude estende-se a uma humilhação a que submete Eli, batendo-o e enterrando-o numa poça, uma reacção contra a impossibilidade de ninguém, nem Deus (em quem não acredita) poder curar o filho, e a afronta que o pastor representa, sobre o domínio de todas aquelas pessoas.

E eis que chega uma nova personagem, que vem dar um novo rumo à jornada emocional que Daniel vinha percorrendo - é Henry, seu (suposto) irmão. Aqui, há uma nova confrontação com os homens da Standard, num café, com um campo/contra-campo entre Daniel e os mesmos, quase westerniano, em que estamos prontos a vê-lo disparar a qualquer momento (a alternância entre a sua cara, os homens despreocupados, os copos na mesa) - anuncia que, ele próprio, construirá o seu oleoduto, sublinhando a rejeição da proposta de compra. Se já tínhamos um novo nível na sua esfera familiar, temos também outro nível na sua esfera profissional. Sendo algo que já estava eminente, Planiview envia o seu filho para longe, depois de este ter provocado um incêndio, aparentemente inexplicável, na sua própria casa, onde dormiam os dois, mais o aparecido tio - é o início de um desequilíbrio quanto à família. Pouco depois, apercebe-se de que será difícil adquirir os terrenos para construir o oleoduto (apesar da sua grande determinação, mostrada na brilhante sequência em que prega os ferros por todo o terreno, terminando num incrível contra-picado em cima de uma mesa no "escritório") - desequilíbrio quanto ao negócio.

Mas é depois de um incrível grande plano de Daniel, num grande trabalho de montagem e gestão da duração de planos, aquando de uma conversa com Henry, que desperta a dúvida sobre se será que estamos perante um verdadeiro irmão. O homem do petróleo encontra um diário do afinal impostor, meio queimado, que o seu filho havia descoberto e havia tentado queimar, para que o pai nunca descobrisse e pudesse viver com essa pequena alegria. Acaba por matar o viajante e enterra-o no próprio líquido viscoso, enterrando completamente o seu passado no seu presente sucesso - há até aqui um paralelismo coreográfico (Daniel a escavar com uma picareta) e musical com o início do filme, que me parece significar precisamente que, no lugar a que chegou, há apenas lugar aos dois elementos que têm vindo a equilibrar toda a narrativa (sendo que Henry se tentou aproveitar do negócio e a mentir sobre a família). Pela manhã, é descoberto por Barny, aquele a quem tem de comprar os terrenos e cuja única exigência, em concertação com Eli, é que Daniel se sucumba ao baptismo de Deus e à redenção dos seus pecados, na Igreja da Terceira Revelação, uma humilhação máxima para si (que pecados, pergunta Daniel, ao que o velho lhe estende a pistola com que ele matou o irmão, em mais um belo momento cinematográfico).

O turning point do terceiro acto surge precisamente com a redenção de Daniel, perante Eli e perante a Igreja. É uma das cenas mais perfeitas que já vi, conseguindo um balanço perfeito entre a humilhação que Plainview sente, em virtude da vingança de Eli, e a sua irascível inteligência ao saber que aquele acto lhe garantirá os terrenos para o oleoduto e entre os seus motivos - o profundo arrependimento por ter mandado o filho embora ("I abandoned my child!") e o utilitarismo da confissão ("There's an oil pipe!"). Plainview é esse mesmo homem que temos visto que é, grotescamente ambicioso mas sofredor pelo seu ente querido. Os valores narrativos "petróleo" e "família" voltam a estar positivos.
Uma pequena resolução ainda discorre brilhantemente - daqui passamos imediatamente para um travelling em que percorremos a construção do gigante tubo, em plano aproximado, e terminamos num plano geral do reencontro de Daniel e H.W., altura em que ouvimos as suas vozes, que, em contraste com a distância que a imagem transmite, nos dá a conhecer um buraco na relação, que terá um nível que nunca será fechado (uma vez mais, Daniel sempre dupla preocupação).

O último acto é um eloquente epílogo. Viajamos 20 anos para o futuro, altura em que Plainview vive numa gigante mansão, negra e assustadora, alcoólico mas riquíssimo, materialmente glorioso mas emocionalmente desequilibrado. O seu filho cresceu e casou com a sua amiga de infância, Mary, desde sempre a protegida do pai. A discussão que têm é intensa e Daniel Day Lewis entra no final do filme sem perder um pingo da sua interpretação global magistral. Não só os planos são magníficos como toda a cena é narrativamente bem construída, com diálogos incrivelmente profundos e reveladores de toda a relação que existe entre aqueles dois homens, sempre em subtexto. Desde a necessidade de existir um tradutor, pela barreira de entendimento física e concreta que já existe (com dimensão emocional), aos ataques do pai para que ele diga umas palavras, acabando por conseguir (a transposição). O melhor chega quando Plainview brame, irritado e desolado por fora, mas orgulhoso por dentro, que H.W. não é seu filho, pois está a deixa-lo para criar a sua própria companhia - é precisamente o contrário que está a sentir dentro de si: mais ninguém poderia ser mais seu filho do que alguém que ousasse competir consigo de tal forma. E, aqui, a necessidade de fazer um foreshadowing para o diálogo com o irmão, "I have the competition in me.", associando-o com o que diz ao filho, "You have nothing of me.".

A última cena é avassaladora. Eli visita Daniel e é espancado até à morte, num quase simbólico gesto de vingança por toda a oposição que representou para si, a todos os níveis, a determinada altura da sua jornada na terra - a ele, como a mais ninguém senão à sua família, admite ele competição, concorrência, negação, rejeição, defrontação. No fim da vida, Daniel Plainview, um capitalista monstruosamente ganancioso e ambicioso, consegue tudo o que quer, ao nível do negócio do petróleo, sem nunca abandonar os seus mais inconscientes valores familiares. Na sua completa destruição, é o homem com mais sucesso de sempre.

Peço imensa desculpa pelo maior testamento que alguma vez fiz neste blog mas a verdade é que escrevi isto quase como terapia - como disse, tenho estado extasiado com isto. Enfim, resta-me dizer que só conheço um cineasta que conseguia aglutinar a narrativa (plot, diálogos e personagens), o som, a música e a imagem de forma tão perfeita como Paul Thomas Anderson: Stanley Kubrick. E, respondendo à questão que por aí se discute, estabelecidas as necessárias divergências temáticas e de época, e apesar de ser grande, grande fã de muitos outros, sim, P.T.A. será o novo Kubrick.

Sunday, February 13, 2011

The King's Speech / O Discurso do Rei (2010)


Atravessou vários problemas de produção (financiamento para um filme sobre "gaguez"), teve ao leme um realizador nada habituado aos trejeitos oscarianos e partiu para a corrida quando um tal de "The Social Network" já andava a fazer estragos e a partir tudo o que era concorrência, nos escritos da crítica. Começa a aparecer lentamente. Um filme histórico é sempre uma peça de ver, e a prestação de Colin Firth começa a ser verdadeiramente badalada, à medida que crescem profecias sobre a forma como, desta vez, ninguém terá coragem de repetir a injustiça de 2010.


Da minha parte, e nos termos do resto da sociedade cinematográfica, creio, ia vendo O Discurso do Rei da mesma forma que fui vendo "Crazy Heart" no ano passado: um filme que era capaz de ser interessante, que valeria, eventualmente, pela prestação do magnífico casting. Mas eis que começa a borbulhar um hype inesperado, que ultrapassa o intérprete do Rei: aqui e ali, marca presença nos prémios da crítica, ainda ofuscado pelo trabalho de Fincher e Sorkin, de repente arrecada uma série de nomeações nos BAFTA. Começo a ver o filme com outros olhos e a desconfiar de uma cerimónia de dia 27 mais interessante; saltam cá para fora os prémios da especialidade e surge a inesperada vitória de Hooper nos DGA, entre outros.


Chega o dia em que vi o filme. Da história bonita, dos parâmetros histórico-políticos que lhe serviam de paradigma, da necessidade de manter um relativo convencionalismo (o que não significa fazer uma coisa fácil, ao contrário do que muitos pensam), surge um argumento em grande parte previsível. É, no entanto, uma previsibilidade bem tratada, com bons diálogos, disfarçada ao seu máximo, que entretém e envolve, que tem um final emocionante, que se materializa em três grandes prestações e numa realização fenomenal (para mim, o ponto mais alto) - esta, em colaboração com uma belíssima fotografia, uma direcção-artística de grande nível e um óptimo guarda-roupa, cria toda a atmosfera de suspense interno que sente o próprio Rei, a aflição que deriva das dificuldades em manejar o seu exponencialmente importante discurso, o isolamento e vergonha que enfrenta (note-se a alternância entre os grandes planos e os planos mais afastados, a Colin, contra a parede do escritório de Rush e o mesmo a este segundo; compare-se até).


Surpreendeu e penso que não só a mim. Não acho que seja o melhor filme da edição deste ano mas acho que é um concorrente de peso.

PS: Magnífica a banda musical de Desplat.

Sunday, June 20, 2010

Os Filmes dos Presidentes - Aníbal Cavaco Silva


Um retrato auto-biográfico que, a certa altura, deixa de o ser em relação ao pianista polaco Wladyslaw Sziplman para o passar a ser em relação à humanidade.

Na primeira parte da película assistimos à jornada da família do músico, despejada do seu lar, constantemente realojada em locais exclusivamente dedicados a judeus, durante dois anos de vida que fluem de forma estranhamente natural - a resistência colectiva não existe e a indignação individual rapidamente se conforma (v.g., a venda do piano), não havendo oposição ao obstáculo (tese-antídese), de onde se extraia a síntese. Uma continuidade pautada por cenas que vão do despertar da repulsa em nós, público, a uma aflição e horror pela total falta de limites em que mergulhou a crueldade humana na Europa Ocidental, num passado que tememos acontecer em todo e cada segundo, se existirem infinitos universos paralelos por unidade de tempo (v.g., o assassinato do velhinho de cadeira de rodas).

Este sentido acaba por conduzir todo o filme. Wladyslaw fica sozinho, enquanto toda a sua família apanha o comboio até à morte, mas não se emancipa nunca como herói. Não obstante os focos de resistência que acabam por surgir, Spzilman sempre caminha desleixado, sobrevivendo por sorte ou caridade, e nunca tentando ser um salvador. O cenário claustrofóbico dos bairros de judeus, a precariedade das vivências e da alimentação nunca deixam de acompanhar o músico quando este consegue fugir para o lado dos alemães. Um tempo sempre chuvoso, a saliência dos seus ossos, o cabelo desgrenhado e a barba desarranjada que vão surgindo, os edifícios completamente destruídos, as mortes arbitrárias que caem do céu, comandam um erguer de um desespero que roça a loucura e a demência, face à putrefacção a que o homem fora reduzido.

Quando voltamos aos bairros judeus, a caminhada é solitária, ladeada por destruição e com o infinito à frente, doentia, mesmo depois da cura pelo médico, húmida, fria e silenciosa. Depois de todo um retrato de tristeza, de incapacidade, de repulsa, de morte, do negrume em que se conseguiu embrulhar o homem, pelas mãos de Hitler, surge a esperança, a luz, o sorriso, a música. Ao longo de toda a película, Szpilman ameaça tocar o piano, veículo da beleza, da tranquilidade, da pausa, da firmeza, ainda que isso o denuncie e lhe custe a vida. Confrontado por um oficial Nazi, modela aquilo que nos surge quase como o mais bonito som do mundo. Deixa-se levar pelas notas redondas, doces, suaves e, com a simbologia de um raio de sol batendo-lhe na cara, parece voltar a fazer os sentimentos de humanidade, clemência e compaixão descer dos Céus e inundar a Terra.

Um retrato cruel, amargo e triste sobre o holocausto, que, no entanto, não nos quer deixar cair num sentimento de total vergonha do homem, porque sempre podemos escolher entre o bem e o mal (como fez Wilm Hosenfeld) e porque sempre haverá um raio e uma melodia de esperança.

Friday, June 11, 2010

Whitaker vai ser Louis Armstrong


Admitindo não conhecer com a mínima profundidade o rei do Jazz, ficando-se pelas músicas mais populares, revela-se agora encantado com a nova jornada biográfica que vai fazendo pelos recantos da vida do autor - isto porque Forrest Whitaker não só vai protagonizar como também vai realizar o filme.

A ideia não será criar um retrato cronologicamente orientado, por ser algo absolutamente impossível, em virtude dos inúmeros eventos de magnitude em que se envolveu Armstrong, mas sim a criação de uma estória em torno de um mito. Aliás, dois mitos - a sua vida pública e a sua vida privada.

Um filme sobre um homem e sobre uma lenda.

Friday, May 7, 2010

Harwood vai escrever guião sobre Martin Luther King Jr.


Ronald Harwood, vencedor do Óscar da Academia para melhor guião adaptado com The Pianist, foi contratado pela DreamWorks Studios para escrever uma história, em jeito de biografia, sobre o bastião dos direitos civis dos negros: Martin Luther King, Jr. O aclamado guionista já escreveu tantos outros filmes que passaram em Portugal, como Oliver Twist, Love in the time of Cholera, The Diving Bell and the Butterfly (valheu-lhe nomeação para Óscar) ou Australia.

Tuesday, April 6, 2010

Monster / Monstro (2003)


As histórias verídicas demoram sempre mais tempo a engolir. Não por serem menos verosímeis, mas sim por se darem ao luxo de passar num exame de consciência mais profundo. No final do filme, há sempre aquele breve segundo de apertada inspiração (não no sentido criativo, mas no sentido fisiológico), que nos deixa ficar sentados, a apreciar os créditos, e a saborear, uma vez mais, a dureza da realidade que muitas vezes nos passa despercebida.

Monster conta a história da prostituta Aleen Wuormos (interpretada por Charlize Theron), condenada a pena de morte, nos EUA, em 1991, e executada em 2003, por sete homicídios, traída nos últimos momentos da sua liberdade por Selby Wall (interpretada por Christina Ricci), sua namorada.
O argumento não é brilhante. Está bem estruturado e aquilo que me parece corresponder ao Act One está muito bem feito: Aleen e Selby conhecem-se, numa situação de engate comum (com a particularidade de que temos uma menina bem comportada a tentar qualquer coisa com uma prostituta nojenta) e vemos aquele interesse e simpatia iniciais transformarem-se numa amizade mais forte e, eventualmente, em amor. A cena em que as duas quase fazem o que têm a fazer, na rua, está muito boa. Paralelamente, é estranho acreditar que Selby não se importa com o modo de vida da companheira.

A partir daí, parece-me que segue um curso normal, sem baixos mas também sem altos. O primeiro turning point (a violação e o primeiro assassinato) está realmente cruel (em termos de história, não de realização), o suficiente para ficarmos contentes quando ela dispara pela primeira vez. No entanto, para qualquer pessoa que tenha lido a sinopse ou que tenha tido conhecimento do caso verídico, não é nada propriamente inesperado. Assim como não é nada do que se segue: mais mortes, acompanhadas por um primeiro período de sucesso e, depois, um segundo turning point, em que tudo se volta a complicar - o acidente de carro; o desenho dos retratos. Para complementar, há o polícia morto (aliás, nesta parte, caso não fosse verídico, tinha ficado interessante desenvolver um angle com o amigo do pai que a violou aos oito anos, em quem ela se inspira para matar o agente já reformado).

Assistimos, basicamente, ao drama interno de uma mulher, que não consegue evitar que este tome conta da sua relação e arraste o seu primeiro e único amor para a confusão. Sentimos todo o seu passado a empurrar, a espezinhar o seu presente. Sentimos o seu "eu" inocente, pilhado e vandalizado na sua essência, aquando da sua infância, assumir as rédeas do seu "eu" actual - destruído, feio, sujo, desgastado. Sentimos que "o tempo não volta para trás" e, se não o seu corpo, a sua alma já está condenada (ou ao castigo ou à miséria) - veja-se o assassínio do único homem que lhe quis dar banho e comida, para a levar para junto dos "filhos" ("I'm so sorry !").

É um relato verídico mas que contem uma mensagem profunda. Talvez por nos dizer exactamente como é a realidade. É evidente o efeito borboleta que conduz o percurso criminoso de cada serial killer, de cada violador, de cada simples ladrão - as consequências dos problemas familiares, do desemprego, entre outros, como gatilhos da criminalidade. É particularmente interessante num debate que, mais ano menos ano, vai assolar o país, como fez o aborto e o casamento homossexual: a legalização da prostituição - nomeadamente no que toca ao aspecto da dignidade destas mulheres e da segurança que (não) têm. Não me vou alongar nesta discussão, para já.


Toda esta reflexão e intensidade que o filme proporciona devem-se, essencialmente, a uma coisa: Charlize Theron. É ela que faz o filme. Ao lado da caracterização física espectacular (vejam qualquer foto do filme e comparem-na com qualquer foto da actriz em situação "normal". Ou se quiserem outro extremo, comparem com o anúncio da Dior, em que deixa cair as roupas e os diamantes. Usou maquilhagem, dentadura postiça e engordou uns belos quilos, aqui), Charlize faz a interpretação da vida dela, digo eu. Todo o sentimento que o filme transmitiu, todo o ódio, amor, toda a tristeza, todo o rasgo de esperança, cada momento de sede de vingança, cada palpitar de arrependimento, tudo se deveu a cada expressão, a cada olhar, a cada grito da actriz. Deixem-me acrescentar que chegou mesmo a valer-lhe o Oscar de melhor actriz principal.

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