Il Gattopardo / O Leopardo (1963) é um longo mas belíssimo retrato da queda da aristocracia siciliana durante o Risurgimento, movimento de unificação da Itália.
O trabalho fotográfico é magnífico, imprimindo uma película em tons quentes (castanhos, vermelhos, laranjas, amarelos), que se dignam até a revelar um balanço entre o campo de acção dos revoltosos e a alienação em que continua a viver a nobreza. De um lado a terra, a poeira, o sacrifício de sol a sol, os tijolos das ruínas em que se abrigam, os próprios uniformes; do outro, o sol na paisagem, um fabuloso trabalho de decoração e costura - os panos vermelhos, o ouro, o requinte, os vestidos das mulheres, as decorações. A isto se alia uma câmara muito natural e várias boas prestações dos actores, sempre incrivelmente corteses, mergulhando a obra numa estranha concepção realista. Estranha porque se trata de uma sociedade de há 100 anos, não podendo nós deixar de acreditar que foi assim mesmo que tudo se passou. A mis-en-scene é, neste filme, perfeita. A música, durante todo o filme, é deliciosa.
O Príncipe de Salina é a personagem central deste reflexivo romance histórico, cujas acções vão muito para lá de uma preocupação superficial e materialista em relação à condição da sua família. Se o mais perceptível fio condutor da narrativa nos leva a vários bailes e festas da alta nobreza, a arranjos mais ou menos elaborados, mais ou menos requintados, de romances efémeros (Concetta e o soldado) ou amores eternos (Tancredi e Angelica - um belíssimo retrato, diga-se), estão sempre implícitas (e por vezes explícitas) valorosas reflexões de filosofia política.
A ideologia. Tancredi junta-se à revolta gilardina, ainda que sem qualquer censura por parte de uma família defensora da manutenção do estado de coisas, para mais tarde acabar por se aliar ao exército real, por ter mais condições. Esta mudança de atitude é quase imperceptível quando volta do combate, em que apenas se nota diferença no uniforme algum tempo depois da sua chegada, mas aguça-se quando defende, com indignação, a morte dos desertores do exército real - se foi contrário ao que fez, em sentido, não o foi, certamente, em direcção. Com que modelos, com que ideais, com que convicções temos legitimidade para defender uma causa ? Uma disputa entre a honra e a lealdade e a segurança (material) e estabilidade (emocional).
A ruptura de uma ordem social e o surgimento de novos paradigmas. Se nos perguntarmos sobre a razão pela qual o Príncipe tão serena e amigavelmente compreendeu e não se opôs à adesão à revolta por parte de Tancredi, encontramos a resposta nas suas palavras: "Para que tudo se mantenha como está, é preciso mudar as coisas.". Talvez por o próprio Visconti ter pertencido à aristocracia, não podemos deixar de interpretar aqui e em todas as imagens, uma certa nostalgia pela mística que envolve a realeza, algo que, em 63, acabou e não volta mais. É por isso que o chefe da família, completamente ciente disto, mas não descurando os problemas que criaram a crise política em que se vive, se sente no dever de se manter fiel ao seu brasão, às suas tradições, à sua história, esperando, paradoxalmente, um triunfo da mudança. A mudança nunca manteria as coisas num sentido literal, mas evitaria sim que um reino, uma família e um povo caíssem na miséria da vergonha e do esquecimento - a preservação da história (ou não fosse o Homem feito de memórias). E novas questões se levantam, como quais os fundamentos da ruptura, a legitimidade da mudança e o papel de cada um como catalisador, travão ou moderador.
"Nós éramos os leopardos, os leões; aqueles que vão tomar o nosso lugar serão as hienas, os chacais; e uma parte de todos nós, leopardos, chacais e ovelhas, continuará sempre a ver-se a si mesmo como o sal da terra."
É um filme que está aqui e à espera de ser visto. Depois direi o que achei. Deixaste-me curioso.
ReplyDeleteGostei bastante do filme e gostei bastante do texto. Parabéns.
ReplyDeleteCumps.
Roberto Simões
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