Foi com uma lenda que o maior festival de cinema do mundo abriu as suas portas, a 12 de Maio: Robin Hood. Envolto num mar de expectativa e mediatismo, porém, o regresso da dupla Scott/Crowe tem deixado, pelos olhos em que passa, um rasto psicológico de desilusão. Diz a generalidade da crítica que, não sendo propriamente um flop, grita "HOLLYWOOD!" por todos os lados, acabando por se tornar demasiado comercial.
No segundo dia, houve destaque para O Estranho Caso de Angélica (dir., Manoel de Oliveira), muito bem recebido pelo júri e pela crítica, como uma obra bela, profunda e madura, ainda que com ficções no que tocou à opinião do público. No mesmo dia, grande destaque e grandes aplausos para Tuesday, After Christmas (dir., Radu Muntean), um drama sobre uma vida em família, deixando nova marca de qualidade do cinema romeno, depois da limpeza feita por 4 Meses, 3 Semanas e 2 dias (dir., Cristian Mungu).
A 14 de Maio, tivemos um novo blockbuster - Wall Street II: Money Never Sleeps, a sequela do clássico de Oliver Stone, da década de 80, que traz, pela primeira vez, as promessas Carey Mulligan e Shia LaBeouf a Cannes. Não obstante algumas vozes críticas sobre os vestígios hollywoodescos da produção, as críticas acabaram por ser positivas, com louvor para a influência que o filme pode ter, depois do primeiro ter tido na comunidade financeira, numa época de problemas financeiros.
O cinema romeno volta a dar nas vistas com a sequela de A Morte do Sr. Lararescu, Aurora. Cris Puiu realiza e protagoniza o filme, uma crítica à violência, que se segue à crítica ao funcionamento da administração pública, mais especificamente, da saúde, na Roménia.
Em competição, directamente da Coreia do Sul, sempre em destaque no festival da cidade francesa, tivemos uma empregada doméstica (Jeon Do-yeon, com uma excelente interpretação, diz-se) que se torna amante do chefe de família, acabando por levar à destruição da família - é The Housemaid, de Im Sang-soo, um remake de uma versão de 1960.
A 15 de Maio, estreia You Will Meet a Tall Dark Stranger, de Woody Allen e Another Year, de Mike Leigh. O primeiro, com Naomi Watts, Josh Brolin, Anthony Hopkins e Gemma Jones, mal recebido pela crítica, é uma análise à infidelidade e ao envelhecimento, sempre através de um peculiar toque humorístico. O segundo, com Jim Broadbent e Ruth Sheen, conta a estória de um casal que procura imunizar-se das desgraças que vão acontecendo aos seus próximos, tratando também o tema do envelhecimento, bem como uma reflexão profunda sobre a felicidade. Ao contrário de Allen, a peça de Leigh estava em competição e a crítica reforçou o seu favoritismo.
Ainda destaque para o jovem realizador canadiano, Xavier Dolan, que na passada edição do festival limpou três prémios (J'ai tué ma mere) e desta vez, "já" com 21 anos, volta a surpreender e a conseguir calorosas críticas - Les Amours Imaginaires.
No dia seguinte, tivemos um drama histórico sobre religião, traição e amor, que dividiu as opiniões, La Princese de Montpensier (dir., Bertrand Tavernier) e I Wish I Knew (dir., Zhang Ke Jia, que conta a estória da forma como Shangai se tornou um grande local de troca e comércio.
O sexto dia do festival foi um dos mais aguardados, pelas obras de Iñarritu, Kitano e Godard: Biutiful, Outrage e Film Socialism, respectivamente. Os dois primeiros, parecem representar um corte com o passado: o mexicano volta a trabalhar de forma totalmente independente e desvia-se do registo de Babel, 21 Gramms e Amores Perros; o japonês volta ao drama e ao crime, depois de vaguear por outras bandas. Já a peça do francês foi recebida de forma bastante peculiar: não é possível destruir o ímpeto com que chegou nem erguer um edifício de elogios, já que não é possível compreender bem de que se trata o filme.
No dia 18 chega o favoritíssimo Copie Conforme, um filme iraniano-franco-italiano, dirigido por Abbas Kiarostami, que recebeu excelentes críticas, bem como a actriz principal, Juliet Binoche, que viria a ganhar o prémio. Conta a estória de um cantor de ópera inglês e de uma estrela de cinema, que circulam pela Itália onde se deparam com discussões sobre temas como o amor, as relações, a arte e, enfim, a vida. Em relação a esta participação, foi marcante o momento em que Kiarostami se pronunciou sobre Jafar Panafi, cineasta iraniano preso, por censura, que havia, nesse dia, iniciado greve de fome, em jeito de protesto. Foi com pesar e tristeza, mas especialmente com força, indignação e irreverência que Abbas se manifestou contra uma das muitas violações dos direitos fundamentais da pessoa perpetradas no Irão.
Segue-se aquele que acaba por ser um dos vencedores da noite, Des Hommes et des Dieux, uma estória sobre sete monges franceses torturados em África por extremistas islamitas - um retrato cativante que aborda o tema da religião, que recebeu críticas muito positivas.
No oitavo dia, começamos com Poetry, de Lee Chang-dong. Depois de ser muitíssimo bem recebido em 2009, com Mother, o coreano estreia uma obra sobre uma avó que tenta escrever um poema enquanto luta por contornar as debilidades do envelhecimento e tenta lidar com um neto irresponsável e "mandrião". Também este foi extremamente bem recebido, e acabaria por ganhar um prémio. Além deste, tivemos também a longa, digo, gigante-metragem de 5h30min, dividia em três partes, de Olivier Assayas: Carlos, um filme biográfico sobre um terrorista marxista venezuelano, que coleccionou consideráveis elogios.
A 20 de Maio, quase a terminar, passa o primeiro e único filme americano: Fair Game, de Doug Liman. Mais uma estória com fortes conotações políticas, também no género biográfico, ficamos a conhecer uma agente da CIA (Naomi Watts), encarregue de uma missão relacionada com armas de destruição maciça no Iraque, que acaba por ser "lixada" pela própria Casa Branca, para desacreditar o seu marido (Sean Penn), por um artigo seu, publicado no jornal, numa grande conspiração que envolve a administração de Bush. Primeiro e único foi também La Nostra Vitta, por Itália, de Daniele Luchetti, mal recebido pela crítica mas que acabou por valer um prémio ao realizador, na pele de actor, em ex aequo com Javier Bardem (em Biutiful - era ele o grande favorito, já agora).
A um dia do fim do festival, em competição, aparece Hors-la-loi, de Rachid Bouchareb. Indigénes, do mesmo director, nomeado para a palma e para os Óscares, é a estória que dá origem a esta. Três soldados argelinos combateram pela França, na II Guerra Mundial e, agora, em 2010, são três irmãos que residem em França e lutam, como terroristas, contra uma sociedade que desrespeita os direitos e liberdades das minorias argelinas - uma nota para o facto dos três actores serem os mesmos, bem como os nomes das personagens (Jamel Debbouze, como Säid; Roschdy Zem, como Messaoud; Sami Bouajila, como Abdelkader). Toca no ponto sensível para os anfitriãos, tendo gerado, no mínimo, alguma controvérsia. A recepção da crítica acabou por ser muito boa, recebendo elogios como "histórico" e chegando a ser classificado melhor do que o que o precedeu.
Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (dir., Apichatpong Weerasethakul), é o comprido título daquele que viria a ser o grande vencedor do festival, do já premiado tailandês (que foi até júri do festival, 2009), aclamado no circuito independente, e que desta vez conta a estória do homem moribundo que contacta com a mulher e o filho, já falecidos, que lhe aparecem sob a forma de animais. Uma reflexão profunda sobre a reencarnação, um tema caro à cultura de onde o director emerge.
Houve ainda lugar para o terceiro filme coreano - the last, but no the least, diga-se (vem a ganhar, nessa noite, o prémio Un Certain Regard). Hahaha (digam lá que não está "um título divertido") é de Hong Sang-soo e, dramatizando e "comediando" revela as experiências de dois amigos (um realizador de cinema e um crítico de cinema), que visitaram a mesma cidade, estiveram nos mesmos sítios, falaram com as mesmas pessoas, mas nunca se encontraram um ao outro.
Foram estes, em geral, os balanços feitos pela crítica, que não conseguiu prever alguns vencedores, constantes da lista que se segue:
Competição Oficial
Palme d’Or (Longa-Metragem)
“Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives” de Apichatpong Weerasethakul (Tailândia)
Grand Prix
“Des Hommes Et Des Dieux” de Xavier Beauvois (França)
Prix de la Mise en Scene - Melhor Realizador
Mathieu Amalric por “Tournée” (França)
Prix du Scenario – Melhor Argumento
“Poetry” de Lee Chang-Dong (Coreia do Sul)
Camera d’Or – Melhor Primeiro Filme
“Año Bisiesto” de Michael Rowe
Prix du Jury – Prémio do Júri
“A Screaming Man” de Mahamat-Saleh Haroun (França)
Melhor Interpretação Feminina
Juliette Binoche por “Certified Copy”
Melhor Interpretação Masculina
Javier Bardem por “Biutiful” e Elio Germano por “La Nostra Vita”
Palme d’Or (Curta-Metragem)
“Chienne d’Histoire” de Serge Avedikian
Competição Un Certain Regard
Prize of Un Certain Regard
“Ha Ha Ha” de Hong Sangsoo
Jury Prize
“Octubre” de Daniel Vega & Diego Veja
Special Prize
Adela Sanzhez, Eva Bianco e Victoria Rapos por “The Lips”
Queer Palm Award
“Kaboom” de Gregg Araki
Quinzena dos Realizadores
Art Cinema Award
“Pieds nus sur les limaces” de Fabienne Berthaud (França)
Prix SACD/SACD Prize
“Illégal” de Olivier Masset-Depasse (França)
Label Europa Cinemas
“Le Quattro Volte” de Michelangelo Frammartino (Italia)
PRIX SFR
“Cautare” de Ionut Piturescu (Roménia) e “Mary Last Seen” de Sean Durkin (EUA)
Semana Dos Críticos
Grand Prix Semaine de la Critique
“Armadillo” de Janus Metz
SACD Prize
“Bi, dung so!” de Phan Dang Di
ACID/CCAS Support
“Bi, dung so!” de Phan Dang Di
OFAJ (Very) Young Critic Award
“Sound of Noise” de Ola Simonsson & Johannes Stjaerne Nilsson
Canal+ Award - Melhor Curta-Metragem
“Berik” de Daniel Joseph Borgman
Kodak Discovery Award – Melhor Curta-Metragem
“Deeper Than Yesterday” de Ariel Kleiman
Prémios FIPRESCI
Cannes Competition
“Tournee” de Mathieu Amalric (França)
Un Certain Regard
“Pal Adrienn,” de Agnes Kocsis (Hungria)
Director’s Fortnight/Critics’ Week
“Todos vos sodes capitans” de Olivier Laxe (Espanha)
Olha que o Certified Copy (Copie Conforme) teve críticas péssimas. Só a Juliette Binoche é que se salvava no filme e por isso não me espantou ela ter ganho Melhor Actriz.
ReplyDeleteAnother Year vai provavelmente safar-se bem na corrida aos Óscares, já de Biutiful tenho algumas dúvidas além da mais que óbvia nomeação (e talvez vitória) de Javier Bardem. E quando dizes que corta com o passado... Olha que pelo que li acho que não. Ele consegue seguir o registo sombrio de Children of Men e até superá-lo. Li críticas que lhe pediam para voltar ao Guillermo Arriaga porque o argumento estava por de lá do depressivo.