Saturday, July 31, 2010
Pequeno interregno
Por motivo de férias, e por não saber até que ponto ou com que frequência terei acesso à internet (algo que só descobrirei hoje à noite), o blog ficará parado durante cerca de 15 dias.
Voltarei logo, logo, com mais críticas de novos filmes de 2010 e incursões por outros mais antigos, com particular destaque para Pedro Almodóvar, à semelhança do que aconteceu com Fellini.
Até breve !
Voltarei logo, logo, com mais críticas de novos filmes de 2010 e incursões por outros mais antigos, com particular destaque para Pedro Almodóvar, à semelhança do que aconteceu com Fellini.
Até breve !
Friday, July 30, 2010
Toy Story 3 (2010)
NOTA: Estou com um problema com acentos que, ha data desta publicaçao, ainda nao consegui resolver. Por esse motivo, peço desculpa por nao colocar qualquer tipo de acento. (ex: n~~ao; est´´a)
Nao costumo gostar de sequelas nao planeadas, sendo que as da Disney me deixam particularmente irritado, indignado e desanimado. Foi assim com O Rei Leao (ai vao tres), com Aladino (outros tres), Cinderela, e ate Papuça e Dentuça conta com uma segunda ronda. Sao filmes que perdem sentido, que nao sao mais do que autenticas frustraçoes narrativas, artisticas e de entretenimento.
Toy Story 2 havia sido uma excepçao e o terceiro volume nao so voltou a realizar a proeza como e o primeiro "filme-sequela" que considero ser melhor do que o original.
A premissa inicial nunca tinha pousado na minha mente, mas no final e obvia: um dia o Andy teria de parar de brincar com os bonecos. E como se sempre soubessemos que nunca poderia haver um final feliz, mas nao quisessemos olhar essa inevitabilidade de frente - sabiamos que estavamos a ser defraudados por 3h de peliculas, sendo claro que, para la do ecra, nas profundezas da nossa imaginaçao, Andy iria ficar adulto.
A este aliciante ponto de partida (especialmente para os fas) junta-se um argumento divertidissimo, extremamente original (fora o facto de o urso ser o vilao, algo que se torna obvio a partir do primeiro segundo em que aparece), com uma animaçao fabulosa, de qualidade consideravelmente superior aos dois primeiros, com uma imaginaria camara captadora de imagens e angulos extraordinariamente peculiares, cheios de pormenores, cheios de pequenos trilhos de emoçao (regozijo-me ao dizer que esta a anos-luz dos varios Shrek). Ha varias cenas incriveis, mas deixo destaque para aquela em que Woody e os amigos passam por tras do bebe, durante a escapadela final, e a cena da lixeira a arder, em que parece que tudo vai acabar.
Nada, estas duas cenas ou qualquer outra, teria o poderoso efeito que tem se nao fosse acompanhado por uma perfeita banda sonora - ora estimulante, ora comica, ora melancolica, ora nostalgica (quem nao pensa em todos os seus brinquedos, em todas as batalhas que existiram no seu quarto, e, por fim, no caixote onde estao arrumados agora ?). Ritmo, imagem, sensaçao.
Novo grande destaque para os dialogos e para as piadas, dos quais nao posso deixar de salientar toda a personagem de "Buzz espanhol" e a fala de Barbie quando diz que ela e Ken foram feitos um para o outro. Note-se que, pela primeira vez na estoria do amor e do romance, esta frase deve ser entendida em sentido absolutamente literal. Foi de genio.
Fico feliz por, depois de ver este filme, nao dar por garantido a A Origem o premio de melhor argumento original.
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Wednesday, July 28, 2010
Fellini e a exuberante sátira social: La Dolce Vita (1960) e Satyricon (1969)
Nunca deixam a sátira social ou o retrato autobiográfico de fazer parte das obras de Federico Fellini e foi por isso que, no início desta curta incursão pelo realizador italiano, referi que não seria completamente coerente uma divisão da sua filmografia como a que estava prestes a fazer. Escolhi estas duas obras em especial para tratar a crítica do autor à mundivivência humana pela sua particular beleza visual, pela exuberância das suas mis-en-scene pelo seu flutuar entre a realidade e a fantasia do sonho, pela sua sublimidade da dormência (A Doce Vida) e do conto de fadas (Satyricon). Em ambos: a devassidão do humanismo, a decadência moral.
A Doce Vida é o meu filme favorito do autor, um dos que mais me marcou. Um retrato directo mas subtil, simples mas profundo, realista mas esteticamente belíssimo e fantasioso, da sociedade da altura que, no fundo, é ainda a sociedade em que hoje vivemos - a sociedade contemporânea. Através de uma rápida e por vezes confusa sucessão de dias e noites, acompanhamos Marcello, um homem normal, demasiado normal, algo que faz dele um deambulante terreno e espiritual, deliberadamente procurando por um sentido a dar à sua vida em cada gesto, cada expressão, cada acção, cada conversa, cada nova relação. Não se lhe aponte o dedo por suposto egoísmo com que parece carregar melancolia e aflição da inexistência de propósito para a vida, já que é assim que deixa de ser ele próprio para reencarnar toda a humanidade - não sabemos de onde vimos, nem para onde vamos, nem o que é o universo ou coisa que o valha.
Para escapar a esta aterradora visão do mundo, a este gélido e metálico tubo por onde discorrem os anos que nos levam a navegar pelos mares da vida, Marcello junta-se à classe alta, enverga as suas vestes, segue os seus propósitos, alimenta-se das suas ideias e ambições, divaga pelo seu mundo, tudo sob a capa do jornalismo e da reportagem, acabando por imergir completamente num mundo que, não sendo o seu, como não o era do primeiro Homem, dele não pode sair, como lá estão presos os últimos Homens, que até agora somos nós. E que mundo é esse, pergunta-se. Um mundo decadente, não imoral, porque para isso teria de perdurar o sentido de Dever, mas sim amoral, de uma superficialidade assustadora, cuja reflexão se reduz à luz e ao brilhante dos colares e das pulseiras reluzentes.
Encantadoras vestes, ofuscantes cenários e intensas correrias marcam a pintura e o ritmo do filme, das festas, da futilidade e da devassa da vida privada, da forja dos milagres pela igreja, sob protecção da capa da incapacidade crítica de uma população mecânica. Faiscantes relações, em intensidade e duração, ou não ficássemos nós tão confusos como Marcello, debatendo-se com a sua mulher, algumas prostitutas e com a sua única salvação, a inocente e pura (a única, no filme) Sylvia, com a qual protagoniza a magistral e eterna cena da Fonte de Trevi, mas que acaba por se revelar submissa a um marido autoritário. Nem a família, a riqueza e a poesia nos podem salvar, ou não fosse aquele que as sustentava todas suicidar-se, para desgosto do nosso personagem, que não só o desejava, como o idolatrava.
Na orgia final culmina todo este sentimento e esta mentalidade em que vivemos - o prazer rápido e eficaz, industrial, a luxúria pouco exigente, a bebedeira do intelecto e da existência. Contra isto, apenas surge uma tentativa de troca de palavras com uma pequena rapariga, eventualmente o segundo raio de pureza que surge no filme, tentativa essa que se dilui e espalha pelas emaranhadas redes da já sedimentada incomunicabilidade do homem.
Satyricon, baseado num dos únicos romances conhecidos e recuperados da época do domínio romano, escrito por Gaio Petrónio, é uma uma sátira social e política que se constrói e vai erguendo por meio de degraus ora cómicos, boémios e divertidos, ora tristes, profundos e alarmantes.
Sucedem-se episódios aparentemente descontextualizados, sem uma linha de continuidade, a não ser o pano comum da luta de Encolpius e Ascyltos, dois jovens esbeltos, pelo amor de Giton, um pré-adolescente suave e delicado. O desejo sexual nunca é escondido e acaba depois por fluir para relações com terceiros e entre todos eles, mas o seu retrato, como todo e qualquer retrato ou referência nesta obra, nunca é explícito, cru ou minimamente relevante. Desta vez, a câmara de Fellini preocupa-se não apenas com a imagem mas também com a ideia do sentimento e da emoção. Por entre épicas peripécias e eventos mais ou menos bizarros, inspiração meramente histórica ou fantasiosamente mitológica (a Hermafrodita ou o Minotauro), esbate-se o contraste entre o Deus e o Homem - onde chegou a humanidade, que desafia o Olimpo, sem que a cólera de Júpiter sequer se revele ? Já estarão cansados de nós ? - e acentua-se o contraste entre os Homens - a eterna luta de classes, os banquetes dos ricos na presença dos pobres, a escravatura.
Depois do combate, da loucura, da cáustica luxúria, da bravura, do sucesso e do falhanço, depois da vida e da morte, chega a altura de Encolpius, e nós com ele, partimos para outra Terra, lá longe, que, por não a conhecermos, não nos aquece o intelecto mas nos gatilha a esperança.
A Doce Vida é o meu filme favorito do autor, um dos que mais me marcou. Um retrato directo mas subtil, simples mas profundo, realista mas esteticamente belíssimo e fantasioso, da sociedade da altura que, no fundo, é ainda a sociedade em que hoje vivemos - a sociedade contemporânea. Através de uma rápida e por vezes confusa sucessão de dias e noites, acompanhamos Marcello, um homem normal, demasiado normal, algo que faz dele um deambulante terreno e espiritual, deliberadamente procurando por um sentido a dar à sua vida em cada gesto, cada expressão, cada acção, cada conversa, cada nova relação. Não se lhe aponte o dedo por suposto egoísmo com que parece carregar melancolia e aflição da inexistência de propósito para a vida, já que é assim que deixa de ser ele próprio para reencarnar toda a humanidade - não sabemos de onde vimos, nem para onde vamos, nem o que é o universo ou coisa que o valha.
Para escapar a esta aterradora visão do mundo, a este gélido e metálico tubo por onde discorrem os anos que nos levam a navegar pelos mares da vida, Marcello junta-se à classe alta, enverga as suas vestes, segue os seus propósitos, alimenta-se das suas ideias e ambições, divaga pelo seu mundo, tudo sob a capa do jornalismo e da reportagem, acabando por imergir completamente num mundo que, não sendo o seu, como não o era do primeiro Homem, dele não pode sair, como lá estão presos os últimos Homens, que até agora somos nós. E que mundo é esse, pergunta-se. Um mundo decadente, não imoral, porque para isso teria de perdurar o sentido de Dever, mas sim amoral, de uma superficialidade assustadora, cuja reflexão se reduz à luz e ao brilhante dos colares e das pulseiras reluzentes.
Encantadoras vestes, ofuscantes cenários e intensas correrias marcam a pintura e o ritmo do filme, das festas, da futilidade e da devassa da vida privada, da forja dos milagres pela igreja, sob protecção da capa da incapacidade crítica de uma população mecânica. Faiscantes relações, em intensidade e duração, ou não ficássemos nós tão confusos como Marcello, debatendo-se com a sua mulher, algumas prostitutas e com a sua única salvação, a inocente e pura (a única, no filme) Sylvia, com a qual protagoniza a magistral e eterna cena da Fonte de Trevi, mas que acaba por se revelar submissa a um marido autoritário. Nem a família, a riqueza e a poesia nos podem salvar, ou não fosse aquele que as sustentava todas suicidar-se, para desgosto do nosso personagem, que não só o desejava, como o idolatrava.
Na orgia final culmina todo este sentimento e esta mentalidade em que vivemos - o prazer rápido e eficaz, industrial, a luxúria pouco exigente, a bebedeira do intelecto e da existência. Contra isto, apenas surge uma tentativa de troca de palavras com uma pequena rapariga, eventualmente o segundo raio de pureza que surge no filme, tentativa essa que se dilui e espalha pelas emaranhadas redes da já sedimentada incomunicabilidade do homem.
Satyricon, baseado num dos únicos romances conhecidos e recuperados da época do domínio romano, escrito por Gaio Petrónio, é uma uma sátira social e política que se constrói e vai erguendo por meio de degraus ora cómicos, boémios e divertidos, ora tristes, profundos e alarmantes.
Sucedem-se episódios aparentemente descontextualizados, sem uma linha de continuidade, a não ser o pano comum da luta de Encolpius e Ascyltos, dois jovens esbeltos, pelo amor de Giton, um pré-adolescente suave e delicado. O desejo sexual nunca é escondido e acaba depois por fluir para relações com terceiros e entre todos eles, mas o seu retrato, como todo e qualquer retrato ou referência nesta obra, nunca é explícito, cru ou minimamente relevante. Desta vez, a câmara de Fellini preocupa-se não apenas com a imagem mas também com a ideia do sentimento e da emoção. Por entre épicas peripécias e eventos mais ou menos bizarros, inspiração meramente histórica ou fantasiosamente mitológica (a Hermafrodita ou o Minotauro), esbate-se o contraste entre o Deus e o Homem - onde chegou a humanidade, que desafia o Olimpo, sem que a cólera de Júpiter sequer se revele ? Já estarão cansados de nós ? - e acentua-se o contraste entre os Homens - a eterna luta de classes, os banquetes dos ricos na presença dos pobres, a escravatura.
Depois do combate, da loucura, da cáustica luxúria, da bravura, do sucesso e do falhanço, depois da vida e da morte, chega a altura de Encolpius, e nós com ele, partimos para outra Terra, lá longe, que, por não a conhecermos, não nos aquece o intelecto mas nos gatilha a esperança.
Saturday, July 24, 2010
Inception / A Origem (2010)
Foi longe da beleza visual de Fellini, da serenidade de Antonioni ou do surrealismo de Buñuel que vi aquela que me pareceu uma grande abordagem ao poder do sonho, desta vez com Christopher Nolan. Não sendo um filme que, como fazem as obras dos autores que mencionei, nos envolve de forma artisticamente crua e quase perfeita, é, como conjugação entre a exploração dos mistérios da condição humana e o puro entretenimento, fascinante.
A Origem é um thriller psicológico ao jeito do que já vimos no, para mim ainda superior Memento. Há a equipa dos bons, a (ou "as") equipa dos maus, há o plano, com muita acção, tiros, explosões e perseguições, há os previsíveis acidentes de percurso e há, concebida com uma originalidade desafiante, a controladora atmosfera psicanalítica. Uma viagem pelo mundo dos sonhos e pela sua representação, confusão e fusão com a realidade e pelo subconsciente, o mais profundo e impenetrável guardião de segredos que comporta a natureza humana e e a actividade cósmica, o núcleo fundamental da personalidade (o id de Freud), a origem de todas as ideias (o erro de Descartes ?).
Está sempre presente a intenção de vender o produto, de agradar às massas e daí que surja toda a clara trama hollywoodesca, um claro apelo ao pathos, como é evidenciado pela luta de Cobbs, que, ao contrário da sua equipa, não é apenas psicológica mas também emocional. Não é por isso que deixa de nos prender à cadeira, de nos impressionar pela fantasia em que vivemos ou pela sinceridade do sonho como fundamental meio de auto-conhecimento - o que é a realidade ?
A fotografia é belíssima, a começar pela imagem inicial do embate bruto das ondas contra as quase frágeis rochas, o mar que representa tudo aquilo que o Homem não sabe que é, e cujo vislumbre apenas faísca no limbo do ser e do não ser, da percepção e da ilusão, mas que nos envolve e erode de forma inevitável. Nota muito positiva para os efeitos poderosos da arquitectura dos sonhos e, especialmente, para uma montagem incrivelmente inteligente, emocionante, arrebatadora (como a cena inicial em que Cobbs é "empurrado" para a banheira e o que se passa no sonho), sempre acompanhada por uma música épica e uma câmara que pauta um ritmo ofegante e excitante.
Gostei das interpretações dos actores, especialmente das de Di Caprio e de Lewitt.
A Origem é um thriller psicológico ao jeito do que já vimos no, para mim ainda superior Memento. Há a equipa dos bons, a (ou "as") equipa dos maus, há o plano, com muita acção, tiros, explosões e perseguições, há os previsíveis acidentes de percurso e há, concebida com uma originalidade desafiante, a controladora atmosfera psicanalítica. Uma viagem pelo mundo dos sonhos e pela sua representação, confusão e fusão com a realidade e pelo subconsciente, o mais profundo e impenetrável guardião de segredos que comporta a natureza humana e e a actividade cósmica, o núcleo fundamental da personalidade (o id de Freud), a origem de todas as ideias (o erro de Descartes ?).
Está sempre presente a intenção de vender o produto, de agradar às massas e daí que surja toda a clara trama hollywoodesca, um claro apelo ao pathos, como é evidenciado pela luta de Cobbs, que, ao contrário da sua equipa, não é apenas psicológica mas também emocional. Não é por isso que deixa de nos prender à cadeira, de nos impressionar pela fantasia em que vivemos ou pela sinceridade do sonho como fundamental meio de auto-conhecimento - o que é a realidade ?
A fotografia é belíssima, a começar pela imagem inicial do embate bruto das ondas contra as quase frágeis rochas, o mar que representa tudo aquilo que o Homem não sabe que é, e cujo vislumbre apenas faísca no limbo do ser e do não ser, da percepção e da ilusão, mas que nos envolve e erode de forma inevitável. Nota muito positiva para os efeitos poderosos da arquitectura dos sonhos e, especialmente, para uma montagem incrivelmente inteligente, emocionante, arrebatadora (como a cena inicial em que Cobbs é "empurrado" para a banheira e o que se passa no sonho), sempre acompanhada por uma música épica e uma câmara que pauta um ritmo ofegante e excitante.
Gostei das interpretações dos actores, especialmente das de Di Caprio e de Lewitt.
Monday, July 19, 2010
Fellini, a representação autobiográfica e o sonho: I Vitelloni (1953), Otto e Mezzo (1963), Amarcord (1973)
Verdade seja dita: não é possível, ou sendo, não é totalmente exacto compartimentar a filmografia do mestre italiano desta forma tão estrita, já que outros filmes de que aqui falarei, como Roma e Satyricon, também muito devem ao animado e colorido sono e à personalidade do director. Esses, porém, tratá-los-ei a propósito de outra temática.
Em Os Inúteis acompanhamos as vidas de cinco jovens adultos cuja participação na sociedade não se pode sequer reduzir a uma busca pela diversão, já que essa mesma é, em si, frustrada, restando-lhes os caminhos pelas estreitas e escuras ruas da deambulação eterna. É assim que começam e é assim que Fellini os trás ao ecrã por várias vezes, em ruas desertas, escuríssimas, cujo negro contrasta com fortes focos de luz vinda dos antigos candeeiros, seguindo sem destino, gargalhando sem piada, reflectindo sem tema. Da mesma forma que os absorvem e envolvem as paredes dos antigos prédios que ladeiam e limitam essas ruelas, também assim a vida lhes vai concedendo poiso - de forma tristemente solitária, com enganadores focos de jubilo. É isto que se volta a sentir no contraste entre o silêncio e a tranquilidade quase assustadora que se sente de cada vez que uma personagem sai à rua e a exuberância, o barulho e a escandalosa euforia de cada festim que acontece.
De todas as personagens, o maior símbolo da vivência sem propósito, da existência sem valores, da decadência moral (ainda assim, um retrato longe de ser perturbantemente nietzschiano) é Fausto, um homem que engravida uma inocente, bela e jovem rapariga (Sandra) e que, ao mesmo tempo que parece viver com ela uma feliz relação de marido e mulher, enquanto procura emprego e durante o tempo em que sustém um, não consegue, por meio algum, resistir à luxúria, à curiosidade mórbida de umas novas pernas de mulher, nem que, para isso, tenha de hipotecar a sua felicidade e a dos outros (dos amigos, do pai, da mulher, do filho).
Para eles, a vida não muda e não mudará nunca. A única excepção é Moraldo, irmão de Sandra, que até aos últimos momentos da película em nada se opõe aos devaneios espirituais e carnais do cunhado, à sua completa indecência para com a o mundo honesto (ajuda-o a roubar o antigo patrão) ou à sua caminhada sem destino à vista. Decide que assim não poderá continuar e acaba por partir numa viagem para um novo começo, para uma nova vida, submetendo-se à triste despedida do seu único amigo interessado pela vida (o pequeno Guido), num brilhante momento de cinema autobiográfico em que, à janela do comboio, se ouve a voz de Fellini discorrendo da boca do personagem, "Ciao, Guido.".
Durante cerca de 30 anos, Federico Fellini registou num pequeno diário todos os sonhos que foi tendo, através de palavras, desenhos, pinturas - aí se encontravam representados, descansando tranquilamente, à espera que lhes dessem vida, todos os seus mais íntimos, bizarros e excêntricos desejos, paixões, medos e terrores. É a partir destas mágicas folhas, que hoje em dia se encontram compiladas na obra "Federico Fellini - The Book of Dreams" (ainda sem tradução portuguesa), que o mestre vai, a partir da década de 60, criar algumas das mais bonitas obras de arte que ainda hoje existem, belas composições e concatenações entre a poesia do cinema, da música, da pintura, da fotografia e da arte plástica.
Em Oito e Meio assistimos a uma incrível explanação e representação do inexplicável e irrepresentável drama da criação artística, enfrentado por qualquer músico, escritor, pintor ou cineasta numa ou em várias alturas da sua vida.
O drama consiste exactamente em não conseguir gerir uma mente cheia de tudo mas inundada num nada agoniante. Uma confusão de pensamentos, reflexões, imagens, ideias, sons, cenários, situações que se emaranham uns nos outros, que logo de seguida tentam seguir o seu caminho individualmente, que voltam atrás antes de começarem a seguir para a frente, que começam a meio e que não acabam no fim.
É precisamente isto que Fellini nos mostra e é exactamente com esta sensação que nos deixa. Acompanhamos Guido (em magistral interpretação de Mastroianni), um realizador de cinema que vive no extasiante mundo do sucesso artístico, mas que, desta vez, não sabe o que fazer. Por entre cenários reluzentes, ricos e espalhafatosos, olhando e conhecendo estranhas personagens, umas verídicas outras nem tanto (incluindo a mulher e o produtor), que lhe esmagam o espírito com a pressão em relação a um novo filme, fantasiando e desejando sobre antigos amores que nunca chegamos a saber se alguma vez teve ou se apenas vem caprichando desde sempre, assistindo a deslizes sobre cordas, rodopios sobre rodas, pernas, braços, sorrisos, cantos, luz, muita luz, tudo é drama, tudo é confuso, tudo é aflitivo e tudo parece significar o fim de uma carreira. É inevitável chegarmos ao ponto em que não sabemos o que se está a passar e o que faz parte do dilema da nossa espiritualmente sofredora personagem, do seu sonho, do seu desorganizado imaginário, para o qual contribui a serena e pautada voz do actor principal, que muitas vezes nos acompanha em tom quase documentarista, um narrador participante, enquanto o som do que se passa no filme baixa subtilmente, levando-nos a mergulhar ainda mais profundamente numa consciência que não é a nossa.
Até à cena final ... em que, subitamente, vários actores, vestidos com estranhos fatos, caminham, correm e dançam, atrás do realizador. Finalmente conseguiu harmozinar a orquestra e está pronto a comandar o barco. Brilhante, um dos maiores filmes que já vi.
Com tradução para "Eu lembro-me", Amarcord é a mais literal das autobiografias do autor. É, uma vez mais, com um argumento aparentemente desconexo, recheado de eventos tanto bizarros quanto cómicos, através de uma atmosfera incrivelmente harmoniosa, luminosa e nostálgica que Fellini nos brinda com as mais estranhas personagens, certamente marcantes na sua infância (o adolescente que mais nos aparece é baseado num amigo de infância), e que o continuam a assombrar nos seus sonhos. Desde um avô que balança entre o velhinho confuso e o folião, um pai autoritário, uma mãe defensora de um filho, uma prostituta louca e ninfomaníaca, um tio doido varrido ("Io vogglio una donna!"), uma peixeira gordíssima, retratada como uma autêntica sedutora, terminando na bela e desejada Gradisca, todas as falas, relações e sentimentos nos aparecem como uma tentativa do autor de nos comunicar algo sobre si e sobre os seus primeiros anos.
Nunca esquece a sátira ao Il Duce ou aos métodos de educação da altura - na escola e em casa. Tudo se passa no espaço de um ano e assistimos à rotação das quatro estações ("When the puffballs come, cold winter's almost gone."). A este retrato da inevitabilidade cósmica, alia-se um esboçar de vários eventos cómicos sem ligação, que não se conseguem encadear logicamente, que não constroem uma estória, exactamente porque a vida é assim - uma sucessão de eventos derivados do destino, do efeito borboleta, da sorte, dos outros, muito mais do que um encadeamento pragmático de opções. E, como todas as vidas, assim foi a vida de Fellini.
Saturday, July 17, 2010
Federico Fellini: temas e obras
Este post existe apenas como "estrutura" de ligação de vários artigos especificamente dedicados à obra de Federico Fellini e a alguns dos seus temas mais caros.
(clicar nos links)
Fellini e a estrada da Vida: La Strada (1954) e Le Notti di Cabiria (1957)
Fellini, a representação autobiográfica e o sonho: I Vitelloni (1953), Otto e Mezzo (1963) e Amarcord (1973)
Fellini e a exuberante sátira social: La Dolce Vita (1960) e Satyricon (1969)
(clicar nos links)
Fellini e a estrada da Vida: La Strada (1954) e Le Notti di Cabiria (1957)
Fellini, a representação autobiográfica e o sonho: I Vitelloni (1953), Otto e Mezzo (1963) e Amarcord (1973)
Fellini e a exuberante sátira social: La Dolce Vita (1960) e Satyricon (1969)
Fellini e a estrada da Vida: La Strada (1954) e Le Notte di Cabiria (1957)
A Estrada da Vida, que dá nome a este artigo e cuja dimensão percorre o pautado desenvolver destas duas estórias, e a As Noites de Cabíria são duas serenas e magníficas obras de transição entre o cinema neorealista de Rossellini, De Sica e Visconti e o sonho, a fantasia e a questionabilidade do real de Fellini e Antonioni (voltarei, noutro artigo, a Os Inúteis). Partindo de uma marcada análise às dificuldades vividas em Itália, no pós II Guerra Mundial, o director concede-nos, nestes dois filmes, um bilhete de embarque em melódicas e visualmente deliciosas jornadas pela simplicidade com que os mais primitivos sentimentos nos conduzem pelo caminho terreno a que estamos destinados, ou simplesmente dispostos a fazer - do amor altruísta e puro ao interesse egoísta e manchado, da esperança ao desespero, da expectativa à frustração, da ingenuidade com que começamos este percurso e da dureza e cepticismo com que temos de o enfrentar. Da vida à morte.
Na primeira das películas, seguimos a viagem da inocente e ingénua Gelsomina, vendida pela sua mãe, por 10.000 liras, a um deambulante, reservado, autoritário e reles artista de circo - Zampano. Sem escolha, ofuscada pelas prometidas maravilhas de uma vida de cidade em cidade, ansiosa por aplausos que preenchessem e aquecessem o coração, deslumbrada pela ideia de se sentir capaz, útil e talentosa, acaba por se apaixonar pelo patrão, caindo na realidade e submetendo-se a uma vida mediana, melancólica e submissa. Dorme ao relento, não é respeitada, não é livre. Não é amada.
A certa altura, depois de tentar fugir, assistimos a uma inesperada compaixão, delicadeza e preocupação de Zampano, quando abandona, percebemos aí, "a sua amada", para o seu bem, deixando-lhe algum dinheiro. A última cena é belíssima e agridoce. Numa praia deserta, escura e húmida, percebemos que toda a relação entre os dois, uma dicotomia entre a paixão e a indiferença, foi toda ela uma mentira - Zampano também amava Gelsomina, agora morta. E por isso sofre, e nós sofremos com ele, como se nos deixássemos cair num poço vazio e escuro que mais não é do que a morte, uma demarcação entre o que foi e o que poderia ter sido.
Visualmente brilhante - límpido, polido, equilibrado entre o luminoso e a sombra escura - e melodicamente sincero e emotivo (em duas palavras, "Nino Rota").
Em As Noites de Cabíria, com mais uma fantástica interpretação chapliniana de Giulieta Massina, enveredamos em mais uma busca pelo amor, pelo carinho, pela relação com o outro e, assim, pelo significado da vida, num constante alternar entre a alegria e a tristeza. Cabíria é uma prostituta de rua, que vive num bairro pobre juntamente com as suas colegas de profissão e que faz renascer a ingenuidade e inocência de Gelsomina. Achincalhada pelo seu optimismo e pela sua constante luta por uma vida melhor, vê-se abandonada por homem mediano que só queria o seu dinheiro e por um actor famoso que nela não via mais do que um capricho de que nunca se chega a servir.
Depois de uma maravilhosa cena de hipnotismo, em que quase viajamos até ao mundo com que a personagem sonha, Cabíria parece encontrar o seu verdadeiro amor. A estória volta a repetir-se e o filme termina quase como começa - a nossa personagem está à beira da água e o seu companheiro mais não quer do que o seu dinheiro.
Uma obra em que a luz acompanha a esperança de um coração, em que a sombra e os cinzentos, ou o mero escurecer, orientam a inevitabilidade do esconderijo, da resignação e da tristeza e em que a música nunca nos deixa voltar ao mundo real, do princípio ao fim.
Na primeira das películas, seguimos a viagem da inocente e ingénua Gelsomina, vendida pela sua mãe, por 10.000 liras, a um deambulante, reservado, autoritário e reles artista de circo - Zampano. Sem escolha, ofuscada pelas prometidas maravilhas de uma vida de cidade em cidade, ansiosa por aplausos que preenchessem e aquecessem o coração, deslumbrada pela ideia de se sentir capaz, útil e talentosa, acaba por se apaixonar pelo patrão, caindo na realidade e submetendo-se a uma vida mediana, melancólica e submissa. Dorme ao relento, não é respeitada, não é livre. Não é amada.
A certa altura, depois de tentar fugir, assistimos a uma inesperada compaixão, delicadeza e preocupação de Zampano, quando abandona, percebemos aí, "a sua amada", para o seu bem, deixando-lhe algum dinheiro. A última cena é belíssima e agridoce. Numa praia deserta, escura e húmida, percebemos que toda a relação entre os dois, uma dicotomia entre a paixão e a indiferença, foi toda ela uma mentira - Zampano também amava Gelsomina, agora morta. E por isso sofre, e nós sofremos com ele, como se nos deixássemos cair num poço vazio e escuro que mais não é do que a morte, uma demarcação entre o que foi e o que poderia ter sido.
Visualmente brilhante - límpido, polido, equilibrado entre o luminoso e a sombra escura - e melodicamente sincero e emotivo (em duas palavras, "Nino Rota").
Em As Noites de Cabíria, com mais uma fantástica interpretação chapliniana de Giulieta Massina, enveredamos em mais uma busca pelo amor, pelo carinho, pela relação com o outro e, assim, pelo significado da vida, num constante alternar entre a alegria e a tristeza. Cabíria é uma prostituta de rua, que vive num bairro pobre juntamente com as suas colegas de profissão e que faz renascer a ingenuidade e inocência de Gelsomina. Achincalhada pelo seu optimismo e pela sua constante luta por uma vida melhor, vê-se abandonada por homem mediano que só queria o seu dinheiro e por um actor famoso que nela não via mais do que um capricho de que nunca se chega a servir.
Depois de uma maravilhosa cena de hipnotismo, em que quase viajamos até ao mundo com que a personagem sonha, Cabíria parece encontrar o seu verdadeiro amor. A estória volta a repetir-se e o filme termina quase como começa - a nossa personagem está à beira da água e o seu companheiro mais não quer do que o seu dinheiro.
Uma obra em que a luz acompanha a esperança de um coração, em que a sombra e os cinzentos, ou o mero escurecer, orientam a inevitabilidade do esconderijo, da resignação e da tristeza e em que a música nunca nos deixa voltar ao mundo real, do princípio ao fim.
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