Cumpre este artigo a função de ser o 100º do
A Gente Não Vê e, como não queria que passasse despercebido, resolvi desviar-me um pouco das rubricas que ando a escrever e falar de uma das mais brilhantes trilogias a que já assisti. Trois Coleurs: Bleu, Blanc, Rouge, em português,
Três Cores: Azul, Branco, Vermelho, é este o nome do conjunto das autênticas obras de arte que Kieslowsky realizou antes de morrer. É grande o simbolismo que carregam, o de lutar por traduzir os ideais da revolução francesa, desde então envergados pela bandeira das três listas, não de uma perspectiva política mas sim humana.
Esta foi a ordem pela que foram completados, sendo que o a minha ordem de preferência seria Azul, Vermelho e, por fim, de qualidade um pouco abaixo dos primeiros, Branco.
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TRÊS CORES: AZUL (1993)Marcado pela música absolutamente épica e atordoante e pelo sublime, emotivo e intelectualmente desafiante retrato de uma liberdade essencialmente humana e pessoal, corporal e espiritual.
Julie (num grande, grande papel de Juliet Binoche) perdeu o marido e a filha num desastre de automóvel e desde então fica presa com elásticas mas inquebráveis correntes a esse passado em que era feliz, na cela chamada solidão, uma solidão profunda, uma melancolia existencial. A câmara emotiva e perscrutadora (que começa com um grande plano do olho de Julie, reflectindo o que vê à sua volta, o mundo em que está sozinha), filtrada por um suave azul, percorre uma
mis-en-scene pautada pela mesma cor, que com um mestre ao volante, consegue produzir no espectador um grande estímulo visual e intelectual sobre as ligações que a personagem mantém com o passado, quer concluamos sobre o peso que este comporta (limpar o quarto azul), sobre a harmonia que nele se vivia (guardou o espanta espíritos azul), ou sobre a necessidade e a vontade de se libertar dele (as idas à piscina, tão azul). Uma cena que me impressionou foi aquela, pautada por sombras e azul escuro, em que Julie está em casa, sozinha, num silêncio sepulcral, apenas interrompido pela violência entre jovens, situação que poderia ter impedido, se o quisesse. Vindo à porta, não há ninguém. Apenas um nada, uma decoração fria, escuridão. Deixa-se levar por um torpor de culpa e arrependimento, quem sabe se pelo passado ou se pelo presente, ou se pelos dois, estado esse que se faz acompanhar por bonitos feixes de luz azul brilhante, desvanecentes apenas quando abre os olhos.
Na solidão e na tristeza, o silêncio também é uma prisão, mas inicialmente, para Julie, também a música participa nesse seu cárcere existencial, graças ao renome do seu marido no mundo musical, conhecido por ser magistral compositor. Pressionada a revelar informações (e notas) sobre a inacabada composição para um mediático encontro das Nações Unidas, recusa-se, acabando por deitar fora alguns esboços, certamente valiosos para o património histórico dessa arte.
Não tem nada, nem ninguém. Perdeu o amor do marido, duas vezes, quando descobre que a traía, perdeu o amor da filha, perdeu o amor de uma mãe doente que a confunde com a irmã (
"Eu tinha medo de ratos ?"). Tudo se altera quando se decide a acabar com a mera existência de um ninho de ratos, construído na sua própria casa, com a solução adequada: um gato. Para isso também terá contribuído o mendigo que, com uma flauta, tocou a bonita melodia que o marido criara, e que apenas Julie conhecia (
"De onde conheces isso ?"), algo que não mais faz do que impeli-la a um desprendimento etéreo. Também ela vai deixar de existir, para passar a viver, libertar-se das correias torturadoras, ao deixar que Olivier a ame, ao tentar amar Olivier, ao concordar em concluir a composição do marido com esse seu novo amante (maravilhosos
shots em que dedos percorrem as pautas, enquanto a música ecoa).
Tudo termina numa autêntica epifania de sons estrondosos e belíssimos, num orgasmo físico e emocional das personagens, enfim, em liberdade, uma invejável e tranquila
liberdade.
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TRÊS CORES: BRANCO (1994)As cenas com que abre o filme logo nos alertam para o tratamento de mais uma das eternas separações do Homem - a separação do mundo, a vulgar solidão (nos três filmes há uma chamada telefónica em que a voz da iniciativa pergunta "Ainda me amas ?"). Uma passadeira de aeroporto recheada com malas de viagem e uma audiência judicial de divórcio, em duas línguas. O sentimento de abandono e desespero é muito bem retratado na frieza com que actua a mulher, que se quer separar de Karol, por falta de prazer e calor humano, com uma câmara que capta importantes feições e momentos chave, leves movimentos (o pegar fogo à casa). Depois da sua nacionalidade ter sido um obstáculo à preservação do seu casamento por meios legais, depois de passado algum tempo sem nada nem ninguém, consegue voltar à sua terra natal, na Polónia, onde procura reconstruir a sua vida e esquecer a mulher que tanto amou. Não é efusiva a recepção que o espera, mas ainda assim é de contentamento, o que apenas serve para nos deixar cépticos quanto aos propósitos que este homem ainda tem para viver.
Do outro lado da realidade, se não é esse o sonho, a mulher faz sexo com outros homens, cantando-o ao seu ouvido, aprofundando-lhe uma ferida já demasiado existencial para ser curada pelo tempo, senão pela sua própria antídese. É isso que acaba por acontecer quando Karol, depois de se envolver e suceder no mundo dos negócios, mediante certas conspirações e tráfico de influências, forja a sua morte para trazer a sua amada ao seu funeral. Ainda se amam. Passam uma intensa noite de amor, uma (re)conjugação orgásmica, como a própria edição intensifica, com um
fade to white cada vez mais brilhante, um grito fundo e uma montagem com uma cena dela mesma a sair da igreja, vestida de noiva, num momento mágico, perfeito - esta sequência do casamento é uma repetição, mas que não mais tem o sentido de tristeza e desilusão que tem no início. É agora nova esperança para a relação.
Na manhã seguinte, Karol sai enquanto ouvimos uma música triunfante (o piano e o violino, lindo), deixando no ar a doce e amarga marca e rasto de uma ironia vingativa, quando a sua musa é acordada pelas autoridades, prontas a encerra-la numa cela por suspeita da morte do seu marido, atitude facilitada por ser francesa. A última cena é magnífica e, quando, lá longe, à janela da prisão, ela o pede em casamento, por gestos. Estão
iguais agora, desprovidos de toda a arrogância que deixaram crescer dentro de si, potenciando-a para isolar um e outro da felicidade, do merecimento da vida.
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TRÊS CORES: VERMELHO (1994)O terceiro e último filme da trilogia é aquele que melhor uso dá à cor que lhe dá nome, aliando a aguda intensidade cromática do vermelho aos intensos laços que se podem criar entre os Homens, os laços de amizade, de
fraternidade - o filme é recheado de objectos vermelhos, de copos a carros, vários planos são marcados por uma grande densidade da cor. Aqui, tal como em Azul, também o dedo segue qualquer coisa com grande atenção: um mapa. Valentine é modelo e vive numa aparentemente indiferente prisão psicológica fruto de uma relação com um namorado desleal e possessivo, em contraponto a uma indesejada liberdade de movimentos, fruto exactamente do mesmo - esse homem que ela tanto parece amar, diz estar em Londres, enquanto está a viver a poucos metros da sua casa, enquanto tem encontros com a amante, enquanto não para de lhe telefonar, exigindo que se mantenha em casa. O amor: tão perto e tão longe, tão fácil e tão difícil, tão desejado e tão destruidor.
Depois de atropelar um cão, cria-o como se fosse seu e é quando procura devolve-lo ao seu dono que nasce entre eles, de forma pouco ortodoxa, uma grande relação, que, ainda assim, nos deixa na dúvida entre a sua dimensão - amor fraterno ou amor apaixonado ? Tudo porque parece óbvio que o cão foi deixado exactamente naquele sítio pelo ex-juíz, para que tudo se passasse daquela forma. De facto, têm um ponto comum: não sabem para onde vão, nem sabem bem onde estão, são apenas solitários, contentados. É por isso que o repúdio que Valentine sente quando descobre que o juíz espia os vizinhos, escutando as suas conversas telefónicas, rapidamente redunda num admirável fascínio, disfarçado de um cepticismo convencional. É a única coisa que os liga ao mundo, que laça e desenlaça teias entre si e os outros. Num momento não são ninguém, enquanto que no outro podem destruir uma família - maravilhosa cena em que parece que é isso mesmo que se está a passar, mas tudo não passa de uma fantástica manobra de construção de um suspense quase metafísico, por parte de Kieslowski.
A música é belíssima, com o volume, timming e intensidades perfeitas, tal como nos outros dois filmes. A fotografia é vistosa, pela cor, incrivelmente metafórica, muito irónica e, mais, subtilmente simbólica. É inevitável esse círculo de vazio humano/amizade em que vivemos ? Aqui, o círculo é retratado, pois um dia um homem viu as pernas da sua mulher com outro homem, pela janela, e se agora é ele que sorri, há outro no parapeito.
Na última cena, ficamos a saber quem são os seis sobreviventes de um trágico acidente de barco: Valentine e o namorado, que finalmente se encontram, Julie e Olivier (Azul), Karol e a mulher. É o destino que está selado, e caminhamos todos na mesma direcção ? Brilhante, uma obra de arte.