Tuesday, August 31, 2010
Os melhores das décadas, 2000: Requiem for a Dream
A Vida não é um Sonho não só é, para mim, um dos melhores deste ano e desta década, como é também um dos melhores de sempre. O argumento não é uma tentativa escandalosa de comercializar uma visão ética e política das vivências, mas sim um credível retrato de profundos problemas existenciais da nossa sociedade, resultantes de todo e cada aspecto distópico em que vivemos, que são os vícios que nos corroem de fora para dentro e de dentro para fora, queimando-nos física, psicológica e socialmente. Isto resulta de uma concepção rigorosa da evolução da estória que seguimos, ou mais especificamente, de uma preocupação humana e artística em produzir uma coerente, emotiva e alarmante evolução dos estados presentes das várias personagens que seguimos - quatro toxicodependentes.
A concepção visual podia ou não fazer jus a este grande trabalho escrito, e Aronofsky acabou mesmo por conseguir aqui um majestoso estímulo visual, transmitindo a sua mensagem da forma mais intuitiva possível, quer provocando uma interpretação do intelecto, quer provocando uma reacção dos sentidos. Numa atmosfera negra, não das trevas, mas do escuro da incerteza do propósito, do prazer de viver, há os split screen estabelecedores de dicotomia, stress e simultaneidade/confusão, há os aceleradamente rítmicos close shots dos segundos chave da rendição aos narcóticos, há repetição de motivos, distorções e cores, há uma progressiva transformação da realidade em sonho (nomeadamente na mãe), há uma câmara tão drogada como o sangue das personagens, ora rápida e rotativa, ora estática e sonolenta. Ou seja, o rigor do argumento é justamente complementado pela minuciosidade dos planos e da montagem.
A cena final é o perfeito contrário de uma epifania. Uma sucessão e contínua re-sucessão perturbadora de sequências de perversão sexual, doença, loucura e prisão, até atingirmos um ponto aflitivamente intenso das repugnantes consequências da droga, ao que se segue o mais duro de tudo isso: a continuação da vida, depois de perdas profundas - a perda de um braço, a perda da liberdade, a perda da mente, a perda da dignidade. Mais do que tudo, a perda das relações e a perda de nós próprios.
Sunday, August 29, 2010
Almodóvar e a complexidade familiar: Tacones Lejanos (1991) e Todo sobre mí madre (1999)
A verdade é que todos os filmes de Almodóvar, ou quase todos, poderiam ser desenvolvidos a partir daqui. Tinha de escolher e, para ser sincero, estou satisfeito.
Em Saltos Altos, penetramos numa interessante "negociação relacional" entre uma mãe e uma filha, definida por uma série de iniciativas ofensivas e defensivas, por parte de uma e outra, de natureza aparentemente egoísta, mas profundamente terna, que quase tornam o pedaço da sua vida a que assistimos numa mesa de reuniões, pautada por cedências e investidas, destinadas a encontrar o amor entre uma e outra. De um lado, está a frustração e solidão de uma mulher que enquanto criança fora abandonada por sua mãe, sem grande arrependimento, ou com superficialidade de sofrimento, depois de lhe ter proporcionado um passaporte para o seu sonho de se tornar uma cantora de sucesso. Do outro, está essa mesma mãe, internamente envergonhada, magoada consigo mesmo, por sentir o que perdeu na sua filha, quando volta ao fim de vários anos. Todos estes sentimentos são ardilosamente escondidos por cada uma delas, perante a outra, e vão-se revelando ao longo de uma película que raspa o thriller, mas em que a própria procura pela solução do homicídio é suplantada pela (re)construção de uma pequena família a dois.
Não sendo uma obra brilhante, vale a pena, e parte da sua beleza deve-se ao intenso uso, mais do que em qualquer outra, da música pop, que é, também ela, parte importantíssima de toda a relação que vamos descobrindo.
Muito diferente é o fenomenal Tudo Sobre a Minha Mãe. Talvez o mais arrojado (temática e cinematograficamente) filme de Almodóvar, embarca-nos nas suas já características descodificações emocionais da mulher, a nível inter e intrasubjectivo, atravessando o universo atmosfericamente escandaloso, e por vezes repugnante, da homossexualidade, da transsexualidade, da droga, das DST, de forma quotidiana, completamente livre de preconceito ou medo perante a crítica mais conservadora. Ora sempre muito colorido, ora mais sombrio e ainda assim vivo, é uma magnífica obra sobre os recônditos do feminino e sobre a igualdade dos Homens, desprezando qualquer argumento institucional para a orientação da sociedade. Um filme que diz muito, muito, sobre os ideais do seu autor.
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Pedro Almodóvar
Friday, August 27, 2010
Cem artigos, três cores
Cumpre este artigo a função de ser o 100º do A Gente Não Vê e, como não queria que passasse despercebido, resolvi desviar-me um pouco das rubricas que ando a escrever e falar de uma das mais brilhantes trilogias a que já assisti. Trois Coleurs: Bleu, Blanc, Rouge, em português, Três Cores: Azul, Branco, Vermelho, é este o nome do conjunto das autênticas obras de arte que Kieslowsky realizou antes de morrer. É grande o simbolismo que carregam, o de lutar por traduzir os ideais da revolução francesa, desde então envergados pela bandeira das três listas, não de uma perspectiva política mas sim humana.
Esta foi a ordem pela que foram completados, sendo que o a minha ordem de preferência seria Azul, Vermelho e, por fim, de qualidade um pouco abaixo dos primeiros, Branco.
TRÊS CORES: AZUL (1993)
Marcado pela música absolutamente épica e atordoante e pelo sublime, emotivo e intelectualmente desafiante retrato de uma liberdade essencialmente humana e pessoal, corporal e espiritual.
Julie (num grande, grande papel de Juliet Binoche) perdeu o marido e a filha num desastre de automóvel e desde então fica presa com elásticas mas inquebráveis correntes a esse passado em que era feliz, na cela chamada solidão, uma solidão profunda, uma melancolia existencial. A câmara emotiva e perscrutadora (que começa com um grande plano do olho de Julie, reflectindo o que vê à sua volta, o mundo em que está sozinha), filtrada por um suave azul, percorre uma mis-en-scene pautada pela mesma cor, que com um mestre ao volante, consegue produzir no espectador um grande estímulo visual e intelectual sobre as ligações que a personagem mantém com o passado, quer concluamos sobre o peso que este comporta (limpar o quarto azul), sobre a harmonia que nele se vivia (guardou o espanta espíritos azul), ou sobre a necessidade e a vontade de se libertar dele (as idas à piscina, tão azul). Uma cena que me impressionou foi aquela, pautada por sombras e azul escuro, em que Julie está em casa, sozinha, num silêncio sepulcral, apenas interrompido pela violência entre jovens, situação que poderia ter impedido, se o quisesse. Vindo à porta, não há ninguém. Apenas um nada, uma decoração fria, escuridão. Deixa-se levar por um torpor de culpa e arrependimento, quem sabe se pelo passado ou se pelo presente, ou se pelos dois, estado esse que se faz acompanhar por bonitos feixes de luz azul brilhante, desvanecentes apenas quando abre os olhos.
Na solidão e na tristeza, o silêncio também é uma prisão, mas inicialmente, para Julie, também a música participa nesse seu cárcere existencial, graças ao renome do seu marido no mundo musical, conhecido por ser magistral compositor. Pressionada a revelar informações (e notas) sobre a inacabada composição para um mediático encontro das Nações Unidas, recusa-se, acabando por deitar fora alguns esboços, certamente valiosos para o património histórico dessa arte.
Não tem nada, nem ninguém. Perdeu o amor do marido, duas vezes, quando descobre que a traía, perdeu o amor da filha, perdeu o amor de uma mãe doente que a confunde com a irmã ("Eu tinha medo de ratos ?"). Tudo se altera quando se decide a acabar com a mera existência de um ninho de ratos, construído na sua própria casa, com a solução adequada: um gato. Para isso também terá contribuído o mendigo que, com uma flauta, tocou a bonita melodia que o marido criara, e que apenas Julie conhecia ("De onde conheces isso ?"), algo que não mais faz do que impeli-la a um desprendimento etéreo. Também ela vai deixar de existir, para passar a viver, libertar-se das correias torturadoras, ao deixar que Olivier a ame, ao tentar amar Olivier, ao concordar em concluir a composição do marido com esse seu novo amante (maravilhosos shots em que dedos percorrem as pautas, enquanto a música ecoa).
Tudo termina numa autêntica epifania de sons estrondosos e belíssimos, num orgasmo físico e emocional das personagens, enfim, em liberdade, uma invejável e tranquila liberdade.
TRÊS CORES: BRANCO (1994)
As cenas com que abre o filme logo nos alertam para o tratamento de mais uma das eternas separações do Homem - a separação do mundo, a vulgar solidão (nos três filmes há uma chamada telefónica em que a voz da iniciativa pergunta "Ainda me amas ?"). Uma passadeira de aeroporto recheada com malas de viagem e uma audiência judicial de divórcio, em duas línguas. O sentimento de abandono e desespero é muito bem retratado na frieza com que actua a mulher, que se quer separar de Karol, por falta de prazer e calor humano, com uma câmara que capta importantes feições e momentos chave, leves movimentos (o pegar fogo à casa). Depois da sua nacionalidade ter sido um obstáculo à preservação do seu casamento por meios legais, depois de passado algum tempo sem nada nem ninguém, consegue voltar à sua terra natal, na Polónia, onde procura reconstruir a sua vida e esquecer a mulher que tanto amou. Não é efusiva a recepção que o espera, mas ainda assim é de contentamento, o que apenas serve para nos deixar cépticos quanto aos propósitos que este homem ainda tem para viver.
Do outro lado da realidade, se não é esse o sonho, a mulher faz sexo com outros homens, cantando-o ao seu ouvido, aprofundando-lhe uma ferida já demasiado existencial para ser curada pelo tempo, senão pela sua própria antídese. É isso que acaba por acontecer quando Karol, depois de se envolver e suceder no mundo dos negócios, mediante certas conspirações e tráfico de influências, forja a sua morte para trazer a sua amada ao seu funeral. Ainda se amam. Passam uma intensa noite de amor, uma (re)conjugação orgásmica, como a própria edição intensifica, com um fade to white cada vez mais brilhante, um grito fundo e uma montagem com uma cena dela mesma a sair da igreja, vestida de noiva, num momento mágico, perfeito - esta sequência do casamento é uma repetição, mas que não mais tem o sentido de tristeza e desilusão que tem no início. É agora nova esperança para a relação.
Na manhã seguinte, Karol sai enquanto ouvimos uma música triunfante (o piano e o violino, lindo), deixando no ar a doce e amarga marca e rasto de uma ironia vingativa, quando a sua musa é acordada pelas autoridades, prontas a encerra-la numa cela por suspeita da morte do seu marido, atitude facilitada por ser francesa. A última cena é magnífica e, quando, lá longe, à janela da prisão, ela o pede em casamento, por gestos. Estão iguais agora, desprovidos de toda a arrogância que deixaram crescer dentro de si, potenciando-a para isolar um e outro da felicidade, do merecimento da vida.
TRÊS CORES: VERMELHO (1994)
O terceiro e último filme da trilogia é aquele que melhor uso dá à cor que lhe dá nome, aliando a aguda intensidade cromática do vermelho aos intensos laços que se podem criar entre os Homens, os laços de amizade, de fraternidade - o filme é recheado de objectos vermelhos, de copos a carros, vários planos são marcados por uma grande densidade da cor. Aqui, tal como em Azul, também o dedo segue qualquer coisa com grande atenção: um mapa. Valentine é modelo e vive numa aparentemente indiferente prisão psicológica fruto de uma relação com um namorado desleal e possessivo, em contraponto a uma indesejada liberdade de movimentos, fruto exactamente do mesmo - esse homem que ela tanto parece amar, diz estar em Londres, enquanto está a viver a poucos metros da sua casa, enquanto tem encontros com a amante, enquanto não para de lhe telefonar, exigindo que se mantenha em casa. O amor: tão perto e tão longe, tão fácil e tão difícil, tão desejado e tão destruidor.
Depois de atropelar um cão, cria-o como se fosse seu e é quando procura devolve-lo ao seu dono que nasce entre eles, de forma pouco ortodoxa, uma grande relação, que, ainda assim, nos deixa na dúvida entre a sua dimensão - amor fraterno ou amor apaixonado ? Tudo porque parece óbvio que o cão foi deixado exactamente naquele sítio pelo ex-juíz, para que tudo se passasse daquela forma. De facto, têm um ponto comum: não sabem para onde vão, nem sabem bem onde estão, são apenas solitários, contentados. É por isso que o repúdio que Valentine sente quando descobre que o juíz espia os vizinhos, escutando as suas conversas telefónicas, rapidamente redunda num admirável fascínio, disfarçado de um cepticismo convencional. É a única coisa que os liga ao mundo, que laça e desenlaça teias entre si e os outros. Num momento não são ninguém, enquanto que no outro podem destruir uma família - maravilhosa cena em que parece que é isso mesmo que se está a passar, mas tudo não passa de uma fantástica manobra de construção de um suspense quase metafísico, por parte de Kieslowski.
A música é belíssima, com o volume, timming e intensidades perfeitas, tal como nos outros dois filmes. A fotografia é vistosa, pela cor, incrivelmente metafórica, muito irónica e, mais, subtilmente simbólica. É inevitável esse círculo de vazio humano/amizade em que vivemos ? Aqui, o círculo é retratado, pois um dia um homem viu as pernas da sua mulher com outro homem, pela janela, e se agora é ele que sorri, há outro no parapeito.
Na última cena, ficamos a saber quem são os seis sobreviventes de um trágico acidente de barco: Valentine e o namorado, que finalmente se encontram, Julie e Olivier (Azul), Karol e a mulher. É o destino que está selado, e caminhamos todos na mesma direcção ? Brilhante, uma obra de arte.
Esta foi a ordem pela que foram completados, sendo que o a minha ordem de preferência seria Azul, Vermelho e, por fim, de qualidade um pouco abaixo dos primeiros, Branco.
TRÊS CORES: AZUL (1993)
Marcado pela música absolutamente épica e atordoante e pelo sublime, emotivo e intelectualmente desafiante retrato de uma liberdade essencialmente humana e pessoal, corporal e espiritual.
Julie (num grande, grande papel de Juliet Binoche) perdeu o marido e a filha num desastre de automóvel e desde então fica presa com elásticas mas inquebráveis correntes a esse passado em que era feliz, na cela chamada solidão, uma solidão profunda, uma melancolia existencial. A câmara emotiva e perscrutadora (que começa com um grande plano do olho de Julie, reflectindo o que vê à sua volta, o mundo em que está sozinha), filtrada por um suave azul, percorre uma mis-en-scene pautada pela mesma cor, que com um mestre ao volante, consegue produzir no espectador um grande estímulo visual e intelectual sobre as ligações que a personagem mantém com o passado, quer concluamos sobre o peso que este comporta (limpar o quarto azul), sobre a harmonia que nele se vivia (guardou o espanta espíritos azul), ou sobre a necessidade e a vontade de se libertar dele (as idas à piscina, tão azul). Uma cena que me impressionou foi aquela, pautada por sombras e azul escuro, em que Julie está em casa, sozinha, num silêncio sepulcral, apenas interrompido pela violência entre jovens, situação que poderia ter impedido, se o quisesse. Vindo à porta, não há ninguém. Apenas um nada, uma decoração fria, escuridão. Deixa-se levar por um torpor de culpa e arrependimento, quem sabe se pelo passado ou se pelo presente, ou se pelos dois, estado esse que se faz acompanhar por bonitos feixes de luz azul brilhante, desvanecentes apenas quando abre os olhos.
Na solidão e na tristeza, o silêncio também é uma prisão, mas inicialmente, para Julie, também a música participa nesse seu cárcere existencial, graças ao renome do seu marido no mundo musical, conhecido por ser magistral compositor. Pressionada a revelar informações (e notas) sobre a inacabada composição para um mediático encontro das Nações Unidas, recusa-se, acabando por deitar fora alguns esboços, certamente valiosos para o património histórico dessa arte.
Não tem nada, nem ninguém. Perdeu o amor do marido, duas vezes, quando descobre que a traía, perdeu o amor da filha, perdeu o amor de uma mãe doente que a confunde com a irmã ("Eu tinha medo de ratos ?"). Tudo se altera quando se decide a acabar com a mera existência de um ninho de ratos, construído na sua própria casa, com a solução adequada: um gato. Para isso também terá contribuído o mendigo que, com uma flauta, tocou a bonita melodia que o marido criara, e que apenas Julie conhecia ("De onde conheces isso ?"), algo que não mais faz do que impeli-la a um desprendimento etéreo. Também ela vai deixar de existir, para passar a viver, libertar-se das correias torturadoras, ao deixar que Olivier a ame, ao tentar amar Olivier, ao concordar em concluir a composição do marido com esse seu novo amante (maravilhosos shots em que dedos percorrem as pautas, enquanto a música ecoa).
Tudo termina numa autêntica epifania de sons estrondosos e belíssimos, num orgasmo físico e emocional das personagens, enfim, em liberdade, uma invejável e tranquila liberdade.
TRÊS CORES: BRANCO (1994)
As cenas com que abre o filme logo nos alertam para o tratamento de mais uma das eternas separações do Homem - a separação do mundo, a vulgar solidão (nos três filmes há uma chamada telefónica em que a voz da iniciativa pergunta "Ainda me amas ?"). Uma passadeira de aeroporto recheada com malas de viagem e uma audiência judicial de divórcio, em duas línguas. O sentimento de abandono e desespero é muito bem retratado na frieza com que actua a mulher, que se quer separar de Karol, por falta de prazer e calor humano, com uma câmara que capta importantes feições e momentos chave, leves movimentos (o pegar fogo à casa). Depois da sua nacionalidade ter sido um obstáculo à preservação do seu casamento por meios legais, depois de passado algum tempo sem nada nem ninguém, consegue voltar à sua terra natal, na Polónia, onde procura reconstruir a sua vida e esquecer a mulher que tanto amou. Não é efusiva a recepção que o espera, mas ainda assim é de contentamento, o que apenas serve para nos deixar cépticos quanto aos propósitos que este homem ainda tem para viver.
Do outro lado da realidade, se não é esse o sonho, a mulher faz sexo com outros homens, cantando-o ao seu ouvido, aprofundando-lhe uma ferida já demasiado existencial para ser curada pelo tempo, senão pela sua própria antídese. É isso que acaba por acontecer quando Karol, depois de se envolver e suceder no mundo dos negócios, mediante certas conspirações e tráfico de influências, forja a sua morte para trazer a sua amada ao seu funeral. Ainda se amam. Passam uma intensa noite de amor, uma (re)conjugação orgásmica, como a própria edição intensifica, com um fade to white cada vez mais brilhante, um grito fundo e uma montagem com uma cena dela mesma a sair da igreja, vestida de noiva, num momento mágico, perfeito - esta sequência do casamento é uma repetição, mas que não mais tem o sentido de tristeza e desilusão que tem no início. É agora nova esperança para a relação.
Na manhã seguinte, Karol sai enquanto ouvimos uma música triunfante (o piano e o violino, lindo), deixando no ar a doce e amarga marca e rasto de uma ironia vingativa, quando a sua musa é acordada pelas autoridades, prontas a encerra-la numa cela por suspeita da morte do seu marido, atitude facilitada por ser francesa. A última cena é magnífica e, quando, lá longe, à janela da prisão, ela o pede em casamento, por gestos. Estão iguais agora, desprovidos de toda a arrogância que deixaram crescer dentro de si, potenciando-a para isolar um e outro da felicidade, do merecimento da vida.
TRÊS CORES: VERMELHO (1994)
O terceiro e último filme da trilogia é aquele que melhor uso dá à cor que lhe dá nome, aliando a aguda intensidade cromática do vermelho aos intensos laços que se podem criar entre os Homens, os laços de amizade, de fraternidade - o filme é recheado de objectos vermelhos, de copos a carros, vários planos são marcados por uma grande densidade da cor. Aqui, tal como em Azul, também o dedo segue qualquer coisa com grande atenção: um mapa. Valentine é modelo e vive numa aparentemente indiferente prisão psicológica fruto de uma relação com um namorado desleal e possessivo, em contraponto a uma indesejada liberdade de movimentos, fruto exactamente do mesmo - esse homem que ela tanto parece amar, diz estar em Londres, enquanto está a viver a poucos metros da sua casa, enquanto tem encontros com a amante, enquanto não para de lhe telefonar, exigindo que se mantenha em casa. O amor: tão perto e tão longe, tão fácil e tão difícil, tão desejado e tão destruidor.
Depois de atropelar um cão, cria-o como se fosse seu e é quando procura devolve-lo ao seu dono que nasce entre eles, de forma pouco ortodoxa, uma grande relação, que, ainda assim, nos deixa na dúvida entre a sua dimensão - amor fraterno ou amor apaixonado ? Tudo porque parece óbvio que o cão foi deixado exactamente naquele sítio pelo ex-juíz, para que tudo se passasse daquela forma. De facto, têm um ponto comum: não sabem para onde vão, nem sabem bem onde estão, são apenas solitários, contentados. É por isso que o repúdio que Valentine sente quando descobre que o juíz espia os vizinhos, escutando as suas conversas telefónicas, rapidamente redunda num admirável fascínio, disfarçado de um cepticismo convencional. É a única coisa que os liga ao mundo, que laça e desenlaça teias entre si e os outros. Num momento não são ninguém, enquanto que no outro podem destruir uma família - maravilhosa cena em que parece que é isso mesmo que se está a passar, mas tudo não passa de uma fantástica manobra de construção de um suspense quase metafísico, por parte de Kieslowski.
A música é belíssima, com o volume, timming e intensidades perfeitas, tal como nos outros dois filmes. A fotografia é vistosa, pela cor, incrivelmente metafórica, muito irónica e, mais, subtilmente simbólica. É inevitável esse círculo de vazio humano/amizade em que vivemos ? Aqui, o círculo é retratado, pois um dia um homem viu as pernas da sua mulher com outro homem, pela janela, e se agora é ele que sorri, há outro no parapeito.
Na última cena, ficamos a saber quem são os seis sobreviventes de um trágico acidente de barco: Valentine e o namorado, que finalmente se encontram, Julie e Olivier (Azul), Karol e a mulher. É o destino que está selado, e caminhamos todos na mesma direcção ? Brilhante, uma obra de arte.
Thursday, August 26, 2010
Os melhores das décadas, 2000: Dancer in the Dark
Adorado por muitos, odiado por tantos outros, dicotomia que nada mais faz do que evidenciar que tudo se passou dentro da normalidade, neste trabalho de Lars von Trier, que acabou por vencer a Palma de Ouro, no festival de Cannes. Por mim, não deixou de ser um dos melhores do ano e, como tal, dos melhores da década.
Dancer in the Dark é uma estória de sofrimento e sacrifício pessoal, na esfera da maternidade e do sonho/ambição, aqui retratada de forma peculiarmente paradoxal, pois todo o melodrama, intenso e emocional, é filmado de forma rotineira, pouco preocupada, com uma arrogância própria face aos dilemas da vida. É isto assim graças ao falso cumprimento do famoso Dogma 95, que, se já não havia sido respeitado à risca em "Os Idiotas", muito menos o foi aqui - desta vez, existem cenas de violência, trabalho de luminosidade, música não-diegética, efeitos em computador e câmara estática.
Por entre uma câmara instável, aparentemente amadora, com pouca saturação, através de uma tentativa de reduzir os efeitos pós-produção ao mínimo, assistimos à magistral performance da cantora islandesa Björk, uma mãe pobre e cega, que luta para se sustentar a si e ao filho, procurando juntar dinheiro para lhe pagar uma operação aos olhos, que o resgate do destino que ela já arduamente trilha, e que enternecedoramente mantém acesa a chama de um dia vir a ser uma estrela de um musical.
Sucedem-se os acontecimentos dramáticos que acabam por destruir a vida de Selma, acompanhados por momentos musicais belíssimos (não de uma forma complexa, gloriosa e musicalmente épica, mas sim de forma simples e passageira), em que as cores gastas dão lugar a uma luminosidade extra e em que a câmara finalmente estabiliza por uns segundos, produzindo-se, desta forma, um acumular de tensão sofrível, efemeramente amparado pela resistência da esperança e da ingenuidade da personagem principal, e, sendo a emoção despertada me nós, espectadores, amparado também pela nossa própria piedade. No entanto, o crescendo sente-se, e não sendo aflitivo, não deixa de ser perceptível, culminando numa última cena aterradora, comovente e gritante, que opõe a melodia da vida e do triunfo do amor ao vácuo do silêncio mórbido e repentino.
Ainda assim, não é o meu favorito do autor.
Dancer in the Dark é uma estória de sofrimento e sacrifício pessoal, na esfera da maternidade e do sonho/ambição, aqui retratada de forma peculiarmente paradoxal, pois todo o melodrama, intenso e emocional, é filmado de forma rotineira, pouco preocupada, com uma arrogância própria face aos dilemas da vida. É isto assim graças ao falso cumprimento do famoso Dogma 95, que, se já não havia sido respeitado à risca em "Os Idiotas", muito menos o foi aqui - desta vez, existem cenas de violência, trabalho de luminosidade, música não-diegética, efeitos em computador e câmara estática.
Por entre uma câmara instável, aparentemente amadora, com pouca saturação, através de uma tentativa de reduzir os efeitos pós-produção ao mínimo, assistimos à magistral performance da cantora islandesa Björk, uma mãe pobre e cega, que luta para se sustentar a si e ao filho, procurando juntar dinheiro para lhe pagar uma operação aos olhos, que o resgate do destino que ela já arduamente trilha, e que enternecedoramente mantém acesa a chama de um dia vir a ser uma estrela de um musical.
Sucedem-se os acontecimentos dramáticos que acabam por destruir a vida de Selma, acompanhados por momentos musicais belíssimos (não de uma forma complexa, gloriosa e musicalmente épica, mas sim de forma simples e passageira), em que as cores gastas dão lugar a uma luminosidade extra e em que a câmara finalmente estabiliza por uns segundos, produzindo-se, desta forma, um acumular de tensão sofrível, efemeramente amparado pela resistência da esperança e da ingenuidade da personagem principal, e, sendo a emoção despertada me nós, espectadores, amparado também pela nossa própria piedade. No entanto, o crescendo sente-se, e não sendo aflitivo, não deixa de ser perceptível, culminando numa última cena aterradora, comovente e gritante, que opõe a melodia da vida e do triunfo do amor ao vácuo do silêncio mórbido e repentino.
Ainda assim, não é o meu favorito do autor.
Pedro Almodóvar dá início à rodagem de "La Piel que Habito"
Um obrigado à Dora, sediada no Six Degrees of Separation, pelo alerta que me deixou em relação a esta notícia.
Já alguns meses depois de sabermos que Antonio Banderas iria voltar a fazer parte de um elenco dirigido pelo realizador espanhol, foram anunciadas as restantes presenças, que podem ser consultadas aqui. Esta será a segunda obra de Almodóvar que não parte de um argumento original, mas antes de uma adaptação do livro La Mygale, de Thierry Jounquet, que, à semelhança de Matador, em que o actor principal e o director também trabalharam juntos, deverá ser classificado de um thriller negro e sombrio, ou, como disse o segundo, um filme de terror contra todas as regras do género - desta vez, seguimos a luta de um pai sedento de vingança animal, em busca do violador da sua filha.
Saturday, August 21, 2010
Almodóvar e a conjugação física e metafísica entre o masculino e o feminino: Hable Con Ella (2002)
Apesar de ser um grande fã de todo o trabalho e de toda a sensibilidade artística de Almodóvar, considerando-o um dos meus realizadores favoritos, é na sua obra que encontro um particular destaque entre esta obra-prima e as outras, que também o são, como Tudo Sobre a Minha Mãe, Matador ou Má Educação. Fala Com Ela é visualmente mágico, sereno e estimulante, é musicalmente bonito e narrativamente sensibilizante, sincero, intelectual e emocionalmente surpreendente. Poético, lindo. Lindíssimo.
A cena com que se abre aos nossos corações e à nossa mente é de uma beleza e de uma fluidez de sentidos indescritível, anunciando-nos, através da dança, numa coreografia de Pina Baush, toda a estória do filme, que é a estória do Homem numa essência etérea, superior a Adão e a Eva, acima do Éden - duas mulheres, com os seus vestidos oscilantes, quase como fantasmas, vagueiam instáveis por uma sala repleta de cadeiras, num constante vai e vem, cadeiras apenas desviadas por dois homens que surgem no palco. É esta a representação de Benigno e Marco, como moldadores dos caminhos de Alicia e Lydia, uma cooperação eterna, inevitável, enquanto, na plateia, Marco chora emocionado, revelando que os homens também choram e isso já não pode mais diferenciar o sexo masculino do feminino.
É enquanto Alicia e Lydia estão em coma que os dois homens se conhecem, se tornam companheiros de sentimentos e, juntos, aprendem sobre mulheres. Mas esta aprendizagem não é puramente prática, analítica, esquemática. As duas, em coma, estão num estado pouco conhecido por nós, balançam entre a vida e a morte, uma viagem feita por poucos, e flutuam numa condição quase metafísica - é exactamente assim que assistimos à impossibilidade do masculino em viver sem o feminino, perpetuando-se uma cuidadosa guarda de uns em relação aos outros, cada um influenciando o outro (pois a inactividade de Lydia e Alicia também trilham os caminhos de Marco e Benigno, eles prendem-se e elas prendem-nos). Falar com elas, é a solução.
Através de um argumento incrivelmente original, pautado pelo flashback, ficamos a conhecer o surgimento de duas relações de identificação, da sua destruição, das alegrias que comportam e das tragédias a que levaram - a consequência entre a separação entre um homem e uma mulher pode ir desde a desistência melancólica e passível de doloroso arrependimento, à obsessão mais doentia e desumana (Benigno engravida Alicia, em coma).
As mortes que surgem antes do final da película são acompanhadas pelo surgimento de nova vida, criando um ambiente dramático e evidenciador do equilíbrio existente entre os sexos, numa comunhão que nos ultrapassa, sempre ultrapassou e sempre ultrapassará (a cena do filme mudo representa tudo isto de forma magistral). Os homens são iguais aos homens, as mulheres são iguais às mulheres, os homens são mulheres, as mulheres são homens, o homem surge da mulher, a mulher surge do homem. É de uma incontornabilidade assustadora, de onde resulta o amor, o sexo, a reunião, a intimidade, a solidão.
O filme termina como acaba - com dança, música (enfim, beleza, beleza), com Marco a chorar, alguns lugares à frente de Alícia, mãe de um filho sem pai (Benigno havia-se suicidado na prisão, condenado por violação à própria), tudo indicando que, para lá da rodagem, surgiu um novo romance. A tal continuação, o tal equilíbrio.
Friday, August 20, 2010
Almodóvar, a obsessão e a necessidade do auto-conhecimento: Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988) e La Mala Educatión (2004)
A obsessão é um dos inafastáveis veículos de condução da essência humana, ao ser todo um conjunto de atitudes potenciais, portanto, que exponenciam outras, mais simples. Trata-se de um espelho dos pontos de vista da emoção e do intelecto humano - de forma mais racional e prospectiva, e aí chame-se-lhe ambição, ou mais descontrolada e alheia, e aí chame-se loucura.
Foi com um pequeno retrato de um conjunto de obsessões que Pedro Almodóvar deu o grando salto para a ribalta, nomeadamente para solo norte-americano, em Mulheres à beira de um ataque de nervos. Longe das suas lutas psicológicas, filosóficas e culturais pelo liberalismo social e sem intenções discurssivas mais profundas, sobre o Homem, que normalmente aborda, conta-nos a estória de um dia na vida de três mulheres que se conhecem e se interligam através de um conjunto de teias ditadas pelos seus homens ou pelo acaso, acabando cada um por levar ao outro. São vários os episódios caricatos e hilariantes que as personagens protagonizam, a um ritmo precisamente nervosinho (close-shot nos sapatos irrequietos), consciente mas à beira do ligeiro histerismo, com diálogos secos, rápidos e cómicos e com uma atmosfera neutra e incrivelmente colorida - um melodrama paródico, um filme engraçadíssimo, um óptimo remédio para a má disposição.
Em Má Educação, identifico uma visão e uma abordagem completamente diferente ao tema, às personagens, à atmosfera, à vida - uma obsessão por respostas, por explicações, ainda que forjadas. O linear desmantela-se em o desestruturado e indeciso (sucessivas analepses), conferindo ao argumento a primeira ponta de dinâmica e criatividade e embrenhando o espectador na efémera e recorrente luz com que a nossa memória nos confere acesso ao passado. A perspectiva singular e directa desmonta-se num aglomerar de influências, desenvolvendo-se aqui toda a genialidade narrativa da película, pois são várias as estórias que assistimos, nós e as personagens, de forma autónoma e separada, como inúmeras caixas sucessivamente dentro umas das outras, abrindo-se à nossa vontade, fazendo-nos duvidar da sua continuidade e questionar sobre o seu papel.
É assim a única forma de compreender o caminho por onde viemos, as etapas que ultrapassamos, os obstáculos que enfrentámos, aquilo que nos deram, aquilo que nos tiraram, aquilo que perdemos, conquistámos ou roubámos. É assim a tentativa que é feita por Almodóvar para se fique, nós a conhecer e as personagens a recordar, aquilo que foi um caminho tumultuoso pela infância, pela adolescência, pela árvore em que se tornou uma má educação, pelo controverso de que se parte e que daí surge (o abuso sexual, a transsexualidade, as drogas), pelas estranhas conexões que podem surgir entre o Homem, que caricaturam o próprio acaso e fazem dele estúpido (do acaso). Uma busca por uma identidade própria (com literais trocas de identidade, ao longo do filme), uma necessidade de auto-conhecimento.
Esteticamente irrepreensível, com uma fotografia serena e emotiva (as cenas da ingenuidade infantil, das brincadeiras, em câmara lenta, acompanhadas pelo canto agudo da criança; a cena escura e azul, assustadora, na casa de banho, com um close-shot nos pés das crianças, escondidas atrás da porta, aumentando a tensão que culmina na imponente imagem do padre, quando a consegue abrir).
Um dos meus favoritos.
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Thursday, August 19, 2010
The Ghost Writer / O Escritor Fantasma (2010)
A mestria do director não parece ter-se desvanecido nem turvado com todo o contexto em que volta a manifestar-se (a prisão domiciliária de Polanski), ou não fosse O Escritor Fantasma uma magnífica jornada pelos convencionalismos do thriller, algo feito de forma potencial e quase sempre alheia a clichés e conveniências narrativas.
A atmosfera é constantemente pesada, dura e avassaladora, com um céu de um cinzento carregado, a noite gélida e húmida, a chuva torrencial e crepitante, como o seu inimigo fogo. A fatalidade climatérica é uma fatalidade emocional, às quais se aliam os cenários perturbantemente fechados, isolados e distantes, do posto de de Adam Lang e equipa, da ilha, do barco, da casa de Paul Emmet. As transições entre uns e outros, o contraste com uma paisagem aberta e libertadora, mas ainda assim de cores mortas e com horizonte no mar, constroem uma incontornável conspiração entre mão do homem e a natureza, na confinação dos personagens a uma autêntica e omnipresente prisão psicológica e política
A câmara, ainda que não tanto como esperava e gostava, percorre connosco o trabalho, expressões, desconfianças, investigação e descobertas do fantasma (um delicioso pormenor - nunca chegamos a saber o nome da personagem protagonizada por Ewan McGregor), envolvendo-nos no mistério e na intriga, oferecendo-nos as peças para montarmos o puzzle, os recortes para fazermos o jornal, os dados para tirarmos as conclusões. A trama é intrincada e complexa, gentil no que toca a permitir-nos desconfiar de todos os interessados, em certo ponto; é reveladora, surpreendente e coerente com a inteligência que Roman permite ao espectador utilizar e faz-se acompanhar com óptima conjugação entre uma música ritmada, assertiva, alarmante e perfeita para momentos de suspense (que gostava que tivesse sido usada mais vezes) e o necessário som do silêncio, quase sempre no lugar certo.
Os minutos finais são passíveis de deixar qualquer audiência colada à cadeira, ao contarem com a solução que temos vindo a procurar desde o início e com duas grandes cenas finais - um close shot perseguidor do bilhetinho da revelação, com grande aumento da tensão e da expectativa (verdadeiramente thrilling) e o atropelamento, casual ou não, do homem que era uma pedra no sapato, como já o havia sido o seu antecessor, com as folhas do manuscrito a inundarem as frias ruas de londres - de quem são estas palavras ao vento ? Um mistério que, na estória para lá da que vemos, nunca será resolvido.
Notas para a excelente prestação de todo o elenco, com particular destaque para Ewan McGregor e Pierce Brosnan.
A atmosfera é constantemente pesada, dura e avassaladora, com um céu de um cinzento carregado, a noite gélida e húmida, a chuva torrencial e crepitante, como o seu inimigo fogo. A fatalidade climatérica é uma fatalidade emocional, às quais se aliam os cenários perturbantemente fechados, isolados e distantes, do posto de de Adam Lang e equipa, da ilha, do barco, da casa de Paul Emmet. As transições entre uns e outros, o contraste com uma paisagem aberta e libertadora, mas ainda assim de cores mortas e com horizonte no mar, constroem uma incontornável conspiração entre mão do homem e a natureza, na confinação dos personagens a uma autêntica e omnipresente prisão psicológica e política
A câmara, ainda que não tanto como esperava e gostava, percorre connosco o trabalho, expressões, desconfianças, investigação e descobertas do fantasma (um delicioso pormenor - nunca chegamos a saber o nome da personagem protagonizada por Ewan McGregor), envolvendo-nos no mistério e na intriga, oferecendo-nos as peças para montarmos o puzzle, os recortes para fazermos o jornal, os dados para tirarmos as conclusões. A trama é intrincada e complexa, gentil no que toca a permitir-nos desconfiar de todos os interessados, em certo ponto; é reveladora, surpreendente e coerente com a inteligência que Roman permite ao espectador utilizar e faz-se acompanhar com óptima conjugação entre uma música ritmada, assertiva, alarmante e perfeita para momentos de suspense (que gostava que tivesse sido usada mais vezes) e o necessário som do silêncio, quase sempre no lugar certo.
Os minutos finais são passíveis de deixar qualquer audiência colada à cadeira, ao contarem com a solução que temos vindo a procurar desde o início e com duas grandes cenas finais - um close shot perseguidor do bilhetinho da revelação, com grande aumento da tensão e da expectativa (verdadeiramente thrilling) e o atropelamento, casual ou não, do homem que era uma pedra no sapato, como já o havia sido o seu antecessor, com as folhas do manuscrito a inundarem as frias ruas de londres - de quem são estas palavras ao vento ? Um mistério que, na estória para lá da que vemos, nunca será resolvido.
Notas para a excelente prestação de todo o elenco, com particular destaque para Ewan McGregor e Pierce Brosnan.
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Wednesday, August 18, 2010
Remake de The Thirty-Nine Steps, de Alfred Hitchcock
Almodóvar e a sátira religiosa: Entre Tinieblas (1983)
É com um dos tematicamente mais controversos filmes da sua carreira e com uma certa dose de non-sense que Almodóvar faz uma arrojada e seca crítica à religião, um risco que custou a aceitação do filme no Festival de Cannes. Negros Hábitos retrata uma série de episódios na vida de uma peculiar congregação de freiras, que vivem num mosteiro quase de recurso, que se vestem de preto e que se guiam na vida pela direcção e em nome do pecado, ou não tivesse Jesus Cristo sido morto para nos redimir dos mesmos - na verdade, o nome das suas vestes, que empresta palavras ao título, é religiosamente transposto para acções, diálogos, filosofias e atitudes.
Em contraste com a rigorosa relação entre o preto e o branco, aqui irmãos da ordem, do compromisso e da humildade (uma vida de despojos), reflectem, cantam e exaltam-se sempre toda uma panóplia das mais emocionantes e despertadoras cores em volta das personagens, estabelecendo o feixe da direcção irónica que a película leva, bastião da "balda", do desleixo e do divertimento quase inconsequente - e se leva o moderador de adjectivo é porque a hipocrisia da madre superiora assim o exige. A droga, a criação de um animal selvagem, a protecção de uma prostituta criminosa intimamente ligada às próprias freiras, a extorsão de dinheiro, o passado marcado pelo assassínio ou o presente pautado pela homossexualidade, e a redacção de contos eróticos são o verdadeiro e leviano dia a dia destas mulheres de Deus, que não deixam de se prezar a um ridículo e falhado esforço de cobertura, de onde a mentira, a forja, a corrupção e o interesse pessoal emergem como triunfo e pseudo-exemplo. Não é dos meus favoritos, mas, ainda assim, consegui aprecia-lo.
Em contraste com a rigorosa relação entre o preto e o branco, aqui irmãos da ordem, do compromisso e da humildade (uma vida de despojos), reflectem, cantam e exaltam-se sempre toda uma panóplia das mais emocionantes e despertadoras cores em volta das personagens, estabelecendo o feixe da direcção irónica que a película leva, bastião da "balda", do desleixo e do divertimento quase inconsequente - e se leva o moderador de adjectivo é porque a hipocrisia da madre superiora assim o exige. A droga, a criação de um animal selvagem, a protecção de uma prostituta criminosa intimamente ligada às próprias freiras, a extorsão de dinheiro, o passado marcado pelo assassínio ou o presente pautado pela homossexualidade, e a redacção de contos eróticos são o verdadeiro e leviano dia a dia destas mulheres de Deus, que não deixam de se prezar a um ridículo e falhado esforço de cobertura, de onde a mentira, a forja, a corrupção e o interesse pessoal emergem como triunfo e pseudo-exemplo. Não é dos meus favoritos, mas, ainda assim, consegui aprecia-lo.
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Pedro Almodóvar - Obras e Tenas
Este post existe apenas como "estrutura" de ligação de vários artigos especificamente dedicados à obra de Pedro Almodóvar e a alguns dos seus temas mais caros.
(carregar nos links)
Almodóvar e o amor e a paixão na morte: Matador (1986), Carne Trémula (1997) e Vovler (2006)
Almodóvar e a sátira religiosa: Entre Tinieblas (1983)
Almodóvar, a obsessão e a necessidade do auto-conhecimento: Mujeres al borde de un ataque de nervios (1998) e La Mala Educatión (2004)
Almodóvar e a conjugação física e metafísica entre o masculino e o feminino: Hable Con Ella (2002)
Almodóvar e a complexidade familiar: Tacones Lejanos (1991) e Todo sobre mi madre (1999)
Almodóvar, o passado e as memórias: Los Abrazos Rotos (2009)
Tuesday, August 17, 2010
Almodóvar e o amor e a paixão na morte: Matador (1986), Carne Trémula (1997) e Volver (2006)
A morte não existe, por si própria. A morte não é, não o pode ser, por não passar de um nada que é a negação de um tudo. No máximo, a morte está. Não no corpo inerte que olhamos com pesar, mas sim nas memórias, nas acções e nas feições dos que vivem. É por isso mesmo que, quer queiramos, quer não, a morte é uma coisa da vida. Mais, a morte é uma coisa dos vivos. A morte está onde brota o amor, onde discorre a saudade, onde aflige a necessidade, onde refulge o ódio ou onde palpita a vingança.
É assim que, em Matador, Pedro Almodóvar nos conta uma estória incrivelmente familiar sobre fazer a morte, num retrato ritualístico. Uma familiaridade que não significa conhecimento, costume, que não significa que estejamos habituados à sua estória (algo impossível, nos complexos meandros dos argumentos do autor), mas que remete para uma caracterização quente, próxima e realista de várias personagens, das suas relações, vivências e locais, na Espanha dos anos 80. Na base de tudo isto, para além das magníficas e tão bem orquestradas cores e músicas, está uma câmara silenciosa e intimista, e o motivo mais cultural possível: a tourada. A emaranhada teia que vai ligar as personagens principais é feita por via das mais rotineiras emoções, como o orgulho, a admiração, a lealdade, a culpa ou a paixão, mas que se suplantam todas elas, como acabamos por perceber, em algo único: o desejo. Nesta película, o desejo é retratado de forma tão intensa como negra, não só fazendo referência à morte, como sendo parte da mesma, enquanto está na mente e no corpo do Homem. No final, o sexo, o incontrolável impulso da carne, consagram esse mesmo estado de vida: a morte (excelente fotografia da cena dos amantes ensanguentados, que merecerá análise na rubrica "A Análise da Cena").
Carne Trémula, até agora o único filme do realizador espanhol cujo argumento é uma adaptação, também se desvia, tal como Matador, do tom paródico e cáustico da maior parte da sua filmografia, mas não chega a ser tão soturno como a obra acima analisada. Num jeito próximo do thriller, é, no entanto, tão complexo como os restantes, sempre evidenciando o inafastável poder e influência de cada relação humana na vida de cada um (os primeiros minutos, com a estreia de Penélope com o director, são fenomenais, grande direcção e interpretação). São seis as personagens que se ligam entre si através da amizade, do amor, do ódio, da vingança ou, com mais força, do passado e da sorte, ou azar, dependendo do ponto de vista. Cada pequeno pormenor nos lembra que o homem é puro desejo, pura necessidade e por isso é-nos impossível definir posições quanto às personagens - queremos o bem e o mal a todos (o remorso e o ódio chegam a culminar numa ferverosa e longa noite de sexo, que no final se traduz na mais genuína sinceridade, quando a mulher conta ao marido que passou a noite inteira com o homem que o havia paralisado, supostamente, anos antes). Tudo parece acabar em adormecimento, sangue e distância. No entanto, à cena inicial de aflição, pressa e desenrasque, numa Espanha franquista, opõe-se a cena final, de felicidade, calma e redenção, numa Espanha democrática. Viver, morrer, é sempre ter esperança.
Termino o tema da morte com uma obra que considero subvalorizada na blogosfera, Voltar, e cito o autor, " (...) é precisamente sobre a morte (...)". O registo é completamente diferente de Matador e Carne Trémula, e a evidência surge logo nos primeiros minutos de película, com uma extraordinária e animadíssima cena (actores, música e cores) num funeral, em pleno ritual de cuidar do cemitério e das campas - uma peculiar forma de lidar com a situação, que é resultado de fragmentos autobiográficos do autor, em relação às convicções religiosas da sua zona de La Mancha. A partir daqui viajamos por um extraordinário argumento (muito premiado), em que oscilamos entre a completa paródia e o drama lacrimejante, passando por pontos em que não há outra hipótese se não equilibramo-nos entre um e outro e resolver cair para o lado para o qual a nossa personalidade nos empurrar. Como pano de fundo, estão sempre os vivos, ainda que se fale de mortos, porque já o foram antes, porque o foram primeiro, de onde os sucessivos "vai e vem" entre o passado e o presente, através de uma mãe que devia estar morta, mas, da forma mais irónica e indiferente possível, não está e de uma estória familiar de paixão e fim da vida muito mal contadas. Um marido e pai de família, bêbedo, preguiçoso e predador sexual que acaba assassinado pela filha, que é encoberta pela mãe (magistral performance de Penélope, neste filme), uma amiga com cancro. É também ele um hino à força da mulher, como tantos outros que Almodóvar canta ao feminino.
Vejo aqui uma obra divertida, de certa profundidade (qual é a maneira certa de encarar a morte ? Veja-se a ironia de ter um corpo numa arca frigorífica e dar festas no mesmo local) e extremamente empolgante e envolvente. Não é o melhor de Almodóvar, mas não consegue ser menos do que bastante bom.
É assim que, em Matador, Pedro Almodóvar nos conta uma estória incrivelmente familiar sobre fazer a morte, num retrato ritualístico. Uma familiaridade que não significa conhecimento, costume, que não significa que estejamos habituados à sua estória (algo impossível, nos complexos meandros dos argumentos do autor), mas que remete para uma caracterização quente, próxima e realista de várias personagens, das suas relações, vivências e locais, na Espanha dos anos 80. Na base de tudo isto, para além das magníficas e tão bem orquestradas cores e músicas, está uma câmara silenciosa e intimista, e o motivo mais cultural possível: a tourada. A emaranhada teia que vai ligar as personagens principais é feita por via das mais rotineiras emoções, como o orgulho, a admiração, a lealdade, a culpa ou a paixão, mas que se suplantam todas elas, como acabamos por perceber, em algo único: o desejo. Nesta película, o desejo é retratado de forma tão intensa como negra, não só fazendo referência à morte, como sendo parte da mesma, enquanto está na mente e no corpo do Homem. No final, o sexo, o incontrolável impulso da carne, consagram esse mesmo estado de vida: a morte (excelente fotografia da cena dos amantes ensanguentados, que merecerá análise na rubrica "A Análise da Cena").
Carne Trémula, até agora o único filme do realizador espanhol cujo argumento é uma adaptação, também se desvia, tal como Matador, do tom paródico e cáustico da maior parte da sua filmografia, mas não chega a ser tão soturno como a obra acima analisada. Num jeito próximo do thriller, é, no entanto, tão complexo como os restantes, sempre evidenciando o inafastável poder e influência de cada relação humana na vida de cada um (os primeiros minutos, com a estreia de Penélope com o director, são fenomenais, grande direcção e interpretação). São seis as personagens que se ligam entre si através da amizade, do amor, do ódio, da vingança ou, com mais força, do passado e da sorte, ou azar, dependendo do ponto de vista. Cada pequeno pormenor nos lembra que o homem é puro desejo, pura necessidade e por isso é-nos impossível definir posições quanto às personagens - queremos o bem e o mal a todos (o remorso e o ódio chegam a culminar numa ferverosa e longa noite de sexo, que no final se traduz na mais genuína sinceridade, quando a mulher conta ao marido que passou a noite inteira com o homem que o havia paralisado, supostamente, anos antes). Tudo parece acabar em adormecimento, sangue e distância. No entanto, à cena inicial de aflição, pressa e desenrasque, numa Espanha franquista, opõe-se a cena final, de felicidade, calma e redenção, numa Espanha democrática. Viver, morrer, é sempre ter esperança.
Termino o tema da morte com uma obra que considero subvalorizada na blogosfera, Voltar, e cito o autor, " (...) é precisamente sobre a morte (...)". O registo é completamente diferente de Matador e Carne Trémula, e a evidência surge logo nos primeiros minutos de película, com uma extraordinária e animadíssima cena (actores, música e cores) num funeral, em pleno ritual de cuidar do cemitério e das campas - uma peculiar forma de lidar com a situação, que é resultado de fragmentos autobiográficos do autor, em relação às convicções religiosas da sua zona de La Mancha. A partir daqui viajamos por um extraordinário argumento (muito premiado), em que oscilamos entre a completa paródia e o drama lacrimejante, passando por pontos em que não há outra hipótese se não equilibramo-nos entre um e outro e resolver cair para o lado para o qual a nossa personalidade nos empurrar. Como pano de fundo, estão sempre os vivos, ainda que se fale de mortos, porque já o foram antes, porque o foram primeiro, de onde os sucessivos "vai e vem" entre o passado e o presente, através de uma mãe que devia estar morta, mas, da forma mais irónica e indiferente possível, não está e de uma estória familiar de paixão e fim da vida muito mal contadas. Um marido e pai de família, bêbedo, preguiçoso e predador sexual que acaba assassinado pela filha, que é encoberta pela mãe (magistral performance de Penélope, neste filme), uma amiga com cancro. É também ele um hino à força da mulher, como tantos outros que Almodóvar canta ao feminino.
Vejo aqui uma obra divertida, de certa profundidade (qual é a maneira certa de encarar a morte ? Veja-se a ironia de ter um corpo numa arca frigorífica e dar festas no mesmo local) e extremamente empolgante e envolvente. Não é o melhor de Almodóvar, mas não consegue ser menos do que bastante bom.
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Monday, August 16, 2010
Próximas rubricas e artigos
Realizadores: obras e temas | Uma viagem por algumas obras de alguns realizadores, pelos seus motifs e pelos temas a partir dos quais floresce a sua arte. O primeiro a ser falado já foi Federico Fellini.
Filmes das Décadas | A partir do desafio lançado no blog "CINEROAD - A Estrada do Cinema", em relação às nossas preferências cinematográficas da última década, e da análise que vem sendo feita, sobre os Óscares, no blog "Dial P for Popcorn", vou falar sobre aqueles que terão sido, para mim, os melhores, dos vários anos. Para já, estando em voga a última década, começarei exactamente pelo ano 2000.
Cinema 2010 | Críticas sobre os filmes de 2010, dos mais independentes à corrida aos Óscares
A Análise da Cena | Mais uma nova rubrica, em que me proponho a fazer análises a cenas marcantes, importantes, especiais ou que de qualquer outra forma relevantes.
Saturday, August 14, 2010
Hiroshima, mon amour / Hiroshima, meu amor (1959)
Passam hoje, dia 14 de Agosto de 2010, 65 anos desde que começou o final de um dos mais bárbaros e desumanos conflitos entre nações - minuciosamente planeado, o ataque nuclear a Hiroshima, no Japão, marcava a ascensão dos Estados Unidos à ribalta da Guerra e deitava por terra um aliado chave, ainda que não formal, da Alemanha nazi.
Mas o histórico acontecimento foi, e ainda hoje é, muito, muito mais do que um marco de viragem da realidade estratégica, militar, económica e geopolítica do Mundo. É, paralelamente, numa dimensão tão mais profunda e sombria, um dos maiores símbolos do poder do Homem para sentir, e, se sente, para sofrer, para viver ou para morrer, para optar pela vida ou pela morte, para amar ou para odiar, para escolher e para gerir uma existência material e espiritual. Mas não é a memória que desaparece, não são as imagens ou os sons que se obnubilam, ou como nos teria contado tudo ? É a emoção, é o sentimento de pertença a um mundo estranho, a uma fantasia. “A rapariga de Nievres está morta”, repete. Resta apenas a rapariga que agora vemos.
A bomba caiu, parte da humanidade morreu – não só em quantidade, mas em emoção, em sentimento, tal como o que foi esquecido. Uma transição triste mas necessária de um mundo a muitos de nós não pertenceram, para o único que conhecemos – mas, o mal já estava feito, e somos um pouco mais pobres em humanidade.
Ela fica com ele. Não o contrário. Antes do fade-out, sabemos que o nome da rapariga é Nievres. O dele, é Hiroshima.
Lindo, sublime, mangnífico.
“ – O que significava para ti Hiroshima, em França ?”
“ – O fim da Guerra. Quero dizer, completamente. É incrível que se tenham atrevido a fazê-lo. É espantoso que o tenham conseguido. E também o início de um medo desconhecido, para nós. E depois, a indiferença. E o medo da indiferença, também.”
“ – Onde estavas tu ?”
“ – Tinha acabado de sair de Nievres.”
Mas o histórico acontecimento foi, e ainda hoje é, muito, muito mais do que um marco de viragem da realidade estratégica, militar, económica e geopolítica do Mundo. É, paralelamente, numa dimensão tão mais profunda e sombria, um dos maiores símbolos do poder do Homem para sentir, e, se sente, para sofrer, para viver ou para morrer, para optar pela vida ou pela morte, para amar ou para odiar, para escolher e para gerir uma existência material e espiritual.
Não serve esta introdução de qualquer tomada de posição quanto ao nuclear – se a maldade, e o adjectivo é propositadamente inocente, do bombardeamento foi de uma intrínseca inevitabilidade, também o foi em extrínseca necessidade.
Hiroshima, meu amor, porventura a mais bela obra prima de Resnais, é uma estória de amor e uma história do Homem, ou parte dela. Uma francesa e um japonês estão apaixonados e não sabemos os nomes deles, até ao final. O filme abre com um abraço imerso em sombras, salpicado de água, acompanhado por uma suave e enternecedora música, e é a partir daqui que assistimos a um retrato lindíssimo, poético, suave e subtil das consequências humanas do lançamento da primeira bomba atómica.
Há um paralelismo inicial entre uma Hiroshima parcialmente restaurada e imagens chocantes, aterradoras, quase nojentas, do pós-explosão, pautado por excelentes long-shots e por uma montagem rítmica, que evidencia o contraste entre a simetria da reconstrução e a descoordenação da destruição. O timbre da voz da rapariga e a forma como se dirige não só ao seu homem, mas também a todos nós, confere-lhe um encantador tom documentarista.
O abraço que inicialmente se parece com uma confusão de membros, são afinal o resultado da evidência carnal do amor entre dois seres humanos – a relação, o sentimento. É assim que vivemos, e assim era antes da II Guerra Mundial – era assim que se vivia em França, em Inglaterra ou nos Estados Unidos; era assim que se vivia na Alemanha ou no Japão. É assim, o Homem.
Ao olhar para o seu amante adormecido, a mente da rapariga, por instantes, viaja até uma imagem semelhante, desta feita, de um soldado em sangue, isolado, nos seus braços. Que diferença havia entre estes dois seres humanos e os restantes, que morreram em combate, ou na explosão ? Que diferença havia, na altura da tragédia, na inocente juventude de um francês ou de um japonês ? “O que fazias em Nievres ?”, pergunta-lhe ele, enquanto se olha no espelho – e bem o faz, pois as vivências mais sinceras de um eram reflexos das do outro – o que é isto das classes e das raças ?
Há um paralelismo inicial entre uma Hiroshima parcialmente restaurada e imagens chocantes, aterradoras, quase nojentas, do pós-explosão, pautado por excelentes long-shots e por uma montagem rítmica, que evidencia o contraste entre a simetria da reconstrução e a descoordenação da destruição. O timbre da voz da rapariga e a forma como se dirige não só ao seu homem, mas também a todos nós, confere-lhe um encantador tom documentarista.
O abraço que inicialmente se parece com uma confusão de membros, são afinal o resultado da evidência carnal do amor entre dois seres humanos – a relação, o sentimento. É assim que vivemos, e assim era antes da II Guerra Mundial – era assim que se vivia em França, em Inglaterra ou nos Estados Unidos; era assim que se vivia na Alemanha ou no Japão. É assim, o Homem.
Ao olhar para o seu amante adormecido, a mente da rapariga, por instantes, viaja até uma imagem semelhante, desta feita, de um soldado em sangue, isolado, nos seus braços. Que diferença havia entre estes dois seres humanos e os restantes, que morreram em combate, ou na explosão ? Que diferença havia, na altura da tragédia, na inocente juventude de um francês ou de um japonês ? “O que fazias em Nievres ?”, pergunta-lhe ele, enquanto se olha no espelho – e bem o faz, pois as vivências mais sinceras de um eram reflexos das do outro – o que é isto das classes e das raças ?
Depois de sermos presenteados com imagens sensibilizantes de um filme dentro de um filme (os cartazes da manifestação, que vemos de um ângulo baixo, mas que são filmadas por um ângulo de cima – a omnipresença da indignação), viajamos até ao passado da jovem, algo que nos ocupa quase até ao final da película. Vivia em Nievres, passeava de bicicleta pelos campos, namorava um soldado inimigo (alemão) - a música que nos acompanha é belíssima e torna tudo ainda mais singelo, ainda mais perfeito.
Conta-nos a sua história, como foi viver o seu amor, o que sofreu por ele, o que gritou por ele, o castigo a que foi sujeita pela diferença das nacionalidades (a caverna sombria onde quase enlouqueceu, bebendo o seu próprio sangue e o sal das paredes) e dirige-se ao seu amante japonês como se fosse ele o seu primeiro amor, esse tal amor do seu passado – não será que ficou mesmo louca ? A certa altura conta-nos como a luz voltou, como se restabeleceu, como a classificaram de “razoável”. Como foi que o fez ? Numa palavra, aliás, citando-a: “Esqueci.”.
Por diversas alturas, até este ponto do filme, desde o início, ambos estiveram para se separar – ele para ficar no Japão, ela para voltar a França. Ele sempre insistia para que ela desistisse da viagem, ele sempre hesitava, mas sempre reclamava ir – e depois, sem explicação, sem qualquer interrogação, voltavam sempre a encontrara-se. E tudo se passava num dia apenas, que parecia uma eternidade.
Rebenta uma confusão de sentimentos. O seu grande e passado amor conjuga-se com a recente e até então efémera paixão, com a assimilação dos dois homens. A raiva e a vergonha assoma-a quando se arrepende de ter contado a história do seu amor proibido. A indecisão, o susto, o medo, a necessidade e a vontade envolvem-na quando, uma vez mais, não sabe se deve ficar ou partir – já jurara ambas as acções.
É inevitável. Ou foi. O passado foi bom, foi feliz, mas agora entristece, magoa, corrói. Se há o desejo de lá voltar, esse desejo tem de ser reprimido, porque o passado de que se lembra não pode ser agora marcado apenas pelos momentos bonitos que o constroem, mas pela antídese que são os que se seguem – porque só existe um passado face ao presente – e esses são maus, aflitivos, suicidas. É por isso que esquece, que tem de esquecer, que não consegue deixar de esquecer.
Conta-nos a sua história, como foi viver o seu amor, o que sofreu por ele, o que gritou por ele, o castigo a que foi sujeita pela diferença das nacionalidades (a caverna sombria onde quase enlouqueceu, bebendo o seu próprio sangue e o sal das paredes) e dirige-se ao seu amante japonês como se fosse ele o seu primeiro amor, esse tal amor do seu passado – não será que ficou mesmo louca ? A certa altura conta-nos como a luz voltou, como se restabeleceu, como a classificaram de “razoável”. Como foi que o fez ? Numa palavra, aliás, citando-a: “Esqueci.”.
Por diversas alturas, até este ponto do filme, desde o início, ambos estiveram para se separar – ele para ficar no Japão, ela para voltar a França. Ele sempre insistia para que ela desistisse da viagem, ele sempre hesitava, mas sempre reclamava ir – e depois, sem explicação, sem qualquer interrogação, voltavam sempre a encontrara-se. E tudo se passava num dia apenas, que parecia uma eternidade.
Rebenta uma confusão de sentimentos. O seu grande e passado amor conjuga-se com a recente e até então efémera paixão, com a assimilação dos dois homens. A raiva e a vergonha assoma-a quando se arrepende de ter contado a história do seu amor proibido. A indecisão, o susto, o medo, a necessidade e a vontade envolvem-na quando, uma vez mais, não sabe se deve ficar ou partir – já jurara ambas as acções.
É inevitável. Ou foi. O passado foi bom, foi feliz, mas agora entristece, magoa, corrói. Se há o desejo de lá voltar, esse desejo tem de ser reprimido, porque o passado de que se lembra não pode ser agora marcado apenas pelos momentos bonitos que o constroem, mas pela antídese que são os que se seguem – porque só existe um passado face ao presente – e esses são maus, aflitivos, suicidas. É por isso que esquece, que tem de esquecer, que não consegue deixar de esquecer.
A bomba caiu, parte da humanidade morreu – não só em quantidade, mas em emoção, em sentimento, tal como o que foi esquecido. Uma transição triste mas necessária de um mundo a muitos de nós não pertenceram, para o único que conhecemos – mas, o mal já estava feito, e somos um pouco mais pobres em humanidade.
Ela fica com ele. Não o contrário. Antes do fade-out, sabemos que o nome da rapariga é Nievres. O dele, é Hiroshima.
Lindo, sublime, mangnífico.
“ – O que significava para ti Hiroshima, em França ?”
“ – O fim da Guerra. Quero dizer, completamente. É incrível que se tenham atrevido a fazê-lo. É espantoso que o tenham conseguido. E também o início de um medo desconhecido, para nós. E depois, a indiferença. E o medo da indiferença, também.”
“ – Onde estavas tu ?”
“ – Tinha acabado de sair de Nievres.”
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Interregno quase no fim
Fazer o interregno que estou a (acabar de) fazer não significa apenas deixar de escrever artigos, mas também fazer uma pausa na visita aos outros blogues. É apenas por isso que deixo esta pequena mensagem, referindo que ainda estou em "banho maria" e deixo o artigo acima porque não consegui mesmo resistir à associação do dia e da data.
Até muito breve.
Até muito breve.
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